sexta-feira, 30 de maio de 2008

Cocotidiano Hipócrita

Um pequeno manifesto.

Era uma aula sobre essa coisinha chamada cultura cívica, que quando os europeus colonizadores e imigrantes vieram para cá, esqueceram de trazer. O lance principal da aula, tirando as histórias sempre engraçadas da única professora de nível superior a usar all star, era colocar em choque o interesse pessoal contra o interesse coletivo. Se todos sabemos que o melhor seria agirmos em conjunto para evitarmos um punhado de problemas, por que só nos preocupamos em tirar o nosso da reta? Mais ou menos isso.


O exemplo que a professora deu foi o tal do dilema do prisioneiro: dois presos cúmplices estão incomunicáveis; se um sacanear o outro e resolver dedurar, este se livra da pena quando aponta seu cumplice como culpado; mas se este ficar em silêncio e aquele outro dedurar, vai receber uma pena pesada pois foi dedurado; e se os dois ficarem em silêncio, ambos recebem uma pena leve pois ninguém dedou ninguém. “E aí, o que vocês fazem?” pergunta a professora. Me pareceu aquele tipo de situação que a gente vive pelo menos uma vez na escola – você e um colega meliante sob o carcere da diretora - ou então em casa – você e seu irmão sob o carcere paterno.


Depois de algum silêncio a professora explica que a moral da história é que confiança é uma via de mão dupla: você tem que confiar no outro e saber que o outro confia em ti para fazer a escolha mais proveitosa para ambos. Pena que meus colegas da oitava série não tiveram essa aula e não hesitaram em apontar quem iniciou a grande segunda guerra com tubos de caneta bic e papel mastigado, bem no meio da aula de geografia - ninguém valoriza um espírito guerreiro.


Enfim, toda a aula passava meio que em branco – uma sensação típica do curso – pois eram coisas um tanto vagas e idealizadas, e isso ficou mais forte quando surgiu o tema da reciprocidade: dar sabendo que vai receber. Há quem dê e acabe não recebendo nada de volta, e isso em vários sentidos – é o que dizem mas me isento de testemunhar qualquer prática pessoal sobre isso. Enquanto tentava entender o assunto, surge o burburinho na carteira atrás de mim e que eu teria ignorado se não fosse a carteira do bon vivant desse blog, a saber, Thiago:


- O que você acha disso, Marechal?

- Do que?
- Da reciprocidade.
- Se eu acho que é viável? Claro que é, e... - ia continuar seu pensamento em uma breve digressão séria sobre o assunto, mas é interrompido.
- Me dá 20 centavos então.
- Hein?
- 20 centavos para o RU.


Diante do silêncio desconsertado do Marechal, e da posterior enrolação até emprestar os 20 centavos, entendi melhor o problema da reciprocidade na prática. Dar e receber é complicado.


Mas algo ainda pairava no ar, pedindo para ser explicado também na prática. A aula acabara e, tirando o pequeno episódio dos 20 centavos, só tinha sobrado teoria pura e vazia. Mas eis que a chamada começa, e logo a tensão típica de uma ultima aula de sexta-feira começa: conversas altas, risadas, arrastar de carteiras, fechar de zíperes. Ninguém podia conter-se para responder a chamada e ir embora, contudo ninguém podia ouvir seu nome sendo chamado. Quem respondia um 'presente!', bem gritado por sinal, se ainda não estava conversando começava a conversar e contribuía para a poluição sonora; como ouvir seu nome em meio a tanto barulho? Alguns alunos ainda faziam um 'shhhh' na esperança de que o silêncio fosse reestabelecido e a chamada feita com paz e ordem. Mas tudo em vão. Aqueles que respondiam a chamada já não tinham mais compromisso moral algum; o de letra A estava cagando e andando para o de letra V e desatava a dificultar a chamada. Foi aí que entendi na prática o que é a falta de cultura cívica, o que é você tirar somente o seu da reta e não ligar para mais nada.


Ninguém podia suprimir sua vontade individual, expressa no conversar típico de colegiais eufóricos, para o bem coletivo, expresso na chamada. Mas ainda bem que são só universitários e que eles serão somente a futura classe a ocupar postos que exigem uma certa carga de conhecimentos científicos e morais. Bem, pelo menos não sou o único a não aprender muito bem o que se passa na faculdade.


Para finalizar, nada melhor do que, mais uma vez, a piada de fundo político feito pela nossa querida e simpática – também ligada na moda dos all stars- professora de política:


- Se na Alemanha uma pessoa cai em um buraco, ninguém faz nada, afinal, lá existe um Estado forte que vai ajudar a pessoa e tomar todas as providências necessárias para quem caiu no buraco. Se nos EUA (sempre eles) alguém cair no buraco, logo forma-se um grupo de pessoas, todas fazendo de tudo para tirar essa pessoa do buraco e tomar as medidas necessárias; uma Sociedade toda ajudando um membro seu. Já no Brasil, se alguém cai no buraco, ninguém faz nada pois sabe que aqui não tem Estado nem Sociedade para ajudar, ou seja, não precisa fazer nada por que sabe que ninguém vai fazer mesmo.


Acho que isso finaliza bem o texto.

quarta-feira, 28 de maio de 2008

Pássaros

Pássaros

Sempre gostei de observar animais

Principalmente os humanos

E o mais interessante

A comparação que estes fazem com o resto da bicharada

Tomemos o pássaro por exemplo

Todos que se comparam com ele

Dizem querer ter asas pra voar

Mas eu nunca consegui deixar de pensar

Que se eu fosse um pássaro

Além da asa muito mais determinante

Seria a cloaca



Thiago Elias

sábado, 24 de maio de 2008

Aos amigos de Comores

Em especial àqueles que são humanos e o demonstram

Conhece Comores?
Comores é um discreto arquipélago ao sudeste do continente africano. Lá pelos idos de mil trezentos e bala Zequinha foi ocupada pelos árabes, o que determinou sua formação cultural e religiosa. No Século XVI, portugueses invadiram as ilhas – que ficam a caminho das Índias –, promoveram saques e destruíram a economia local. Desde então esteve sob domínio árabe e francês, até a proclamação da república. Uma das ilhas ainda se encontra sob domínio francês. As demais contam com sistema presidencialista – vitalício, praticamente. Além da instabilidade política, os comorenses sofrem com analfabetismo, desnutrição infantil, entre outros problemas.
Hoje, 24 de maio de 2008, comemora-se 30 anos da proclamação da República Islâmica de Comores.
E daí? Aí que está: daí que Comores somos nós e nossos badulaques, atabaques, luso-saques. Somos nós mesmos, senão por ofertarmos meia dúzia de itens específicos da lista de mercado da Coroa: ouro pro mês, uns troncos de pau-brasil, oportunidade territorial ímpar, um punhado de prata; e não esquecer daquela promoção barata de mão-de-obra.
E daí que pouco importa se eram muçulmanos, se eram cristãos, se não eram nada disso – aliás, hoje, o cristianismo é proibido em Comores. Pouco importa se eram vermelhos, pretos ou amarelos, antes dos sucessivos estupros pálidos. Pouco importa se caçavam, pescavam e colhiam desbravando o seu quintal cuidado pelos deuses ou se comiam à sorte da rede e de Alá. Pouco importa se éramos nós, se foi o nosso sangue que caiu, qual bandeira flamejava orgulhosa. Era gente, de carne, osso e um pouco mais, que conheceu a mais covarde selvageria. Criaturas vivas na rota da civilização que em um dia perdido foram o meio justificado pelo fim estrangeiro. Seres íntegros sucumbindo perante titãs com porretes de ferro. Pessoas, agentes transcendentes, atores históricos sentindo a essência da carne dilacerada por risos, urros, guinchos superficiais e ininteligíveis. Existências apagadas por monstros humanóides, viajantes em ilhas móveis empurradas por pano imensamente desenhado com cruzes púrpuras.

É evidente que a proclamação da república por si só em nada representa a libertação do povo comorense. Nós mesmos continuamos cerceados, subjulgados, espremidos entre dedos nortistas apontados em riste para nós. Seria ingênuo se felicitar e esperar reformas radicais a partir disso. Entretanto, a História nos prova seguidamente que as mudanças são graduais, que bem-estar social não se baixa por decreto – tampouco por revolução*. O processo de uma efetiva independência se constrói pouco a pouco, antes ao tempo do lápis [e da borracha] que ao tempo da caneta.
Os votos que faço a Comores no trigésimo são os mesmos que faço a nós. Que são os mesmos que faço aos estadunidenses, errantes conscientes; aos franceses, que teimam na gafe; aos portugueses, que nada são além do século XVIII; aos cubanos, que erram ineditamente; aos chineses, que prometem errar. E que são os mesmos que faço aos muçulmanos, que já são a maioria de errantes; aos cristãos, errantes seculares; às boas e más pessoas, ainda errantes.
Navegar é preciso. Ser empático também é preciso.



*Dedico a presente nota à Aline: ambos questionamos a
educação que forma médicos em pencas mas não permitiria que eu publicasse esse
mesmo texto por a internete não ser liberada para domicílios.

quinta-feira, 22 de maio de 2008

Corpus Christi – O Feriado (22 de maio - este ano)

Em qualquer outra quinta feira normal eu estaria preocupado, afinal não tem choro, nem vela, nem fita amarela escrita com o nome dela(1), amanhã é imprescindivelmente sexta-feira. Mas hoje, 22 de maio do ano do nosso Senhor 2008 dediquei-me ao ócio e a arte da sociabilidade via MSN o dia inteiro, e como estamos no Brasil, chego à noite sem preocupações porque nenhum professor universitário ousaria não emendar o feriado. Nestas incursões cibernéticas fui indagado sobre o significado deste feriado, não pude responder, devido obviamente a minha ignorância (que, diga-se de passagem, só faz aumentar). O fato muito estarreceu quem me perguntava pois ele bem sabe que sou cristão assíduo, em seguida fiquei com vergonha por ser cristão e não saber o que significa um feriado que tem Christi no nome.

Por isso aqui estou fazendo uma análise deste feriado. Recorri obviamente ao instrumento de pesquisa de todo o adolescente de hoje em dia uma enciclopédia virtual que tomarei o cuidado de não citar por questões autorais (afinal uma mega empresa poderia acabar com este pequeno espaço subversivo e subjetivo a ponto de me deixar sem calças até a segunda geração, ou segunda ordem). Enfim aprendi que a data de Corpus Christi é uma festa que deve ocorrer necessariamente na quinta-feira após a festa da Trindade, que por sua vez ocorre no domingo seguinte à festa de pentecostes. Antes que o leitor ache que o mês de maio é algum tipo de férias coletivas do pessoal lá de cima devido ao número de festas, onde provavelmente não se trabalha com tanta assiduidade como nos outros dias, repare que as festas instituídas pelos homens ( A Festa de Corpus Christi foi instituída pelo Papa Urbano IV com a Bula ‘Transiturus’ de 11 de agosto de 1264) coincidentemente não caíram em nenhum domingo, como aconteceu com a data de pentecostes que ocorreu quando o Espírito Santo desceu sobre os discípulos de Jesus, e portanto foi dada por uma vontade superior. Este é o meu primeiro ponto, quando deixam os homens fazerem os feriados eles fazem num dia que possam emendar a folga no dia seguinte.

Certo, o que significa esta celebração mesmo? A data foi instituída, segundo as minhas fontes (ou a minha fonte), pois a igreja católica sentiu a necessidade de reiterar a presença real e substancial de Cristo na eucaristia. Eucarie..o quê...? Eucaristia, segundo a igreja católica durante a Santa Ceia (ato de comer o pão e beber o vinho assim como fez Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo na sua última refeição, para lembrar do seu corpo partido por nós e por seu sangue derramado para o perdão dos nossos pecados) o pão transforma-se no corpo de Cristo e o vinho em seu sangue através do milagre da Transubstanciação. Aí percebo porque eu desconhecia esta data, os protestantes (ou evangélicos) crêem que a Santa Ceia é apenas um ato simbólico, portanto para lembrar do sacrifício de Cristo, como professo esta fé não faria sentido celebrar a presença substancial de Cristo na Eucaristia.

Obviamente não travarei nenhum embate teológico neste blog, só espero que este “testículo”(2) seja útil para mostrar aos leitores o que significa este feriado, em que provavelmente pouca gente sequer parou para pensar em Deus, ou em Jesus ou mesmo para refletir na própria vida, e tudo o que fizeram foi dar graças (a Deus ou não) por não precisar ir ao trabalho.

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(1)- Velho deitado, digo, velho ditado muito útil e belo.

(2)- Diminutivo de texto, na falta de algum melhor.

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Análise do vestuário da professora feminista



Etnografia empático-crítico-hermenêutica

Propondo-me a fazer uma análise de ocasião [resolvi neste momento por ímpeto intuitivo fazer ciência e não tomar café], lancei-me a campo como quem entra em uma sala de aula estranha – pois foi justamente o que fiz, sob o olhar legítimo ainda que enfadonho da transcrição etnográfica comentada.
O ambiente me foi receptivo. Adentrei entre os presentes sem nenhum tipo de olhar de estranhamento etnocêntrico. Mais tarde vim a saber que isso se deu por não ser uma aula de antropologia.
Já sentado, fiz cara de nativo e, sob essa máscara, soube que se tratava de uma aula de sociologia feminista. Não percebi, entretanto, qual sociologia deveria estar sendo discutida de acordo com o cronograma curricular. Ignoro este elemento e atenho-me àquele, empírico.
Tendo em mãos diversos elementos de compreensão [já sabia então do que se tratava, por que eu caí ali, quem participava da panfletagem e, obviamente, conhecia as referências temporais e espaciais], faltava-me ainda um elo, um tema de diálogo. Faltava-me o como.
Não saberia o leitor o quão tenaz foi minha busca introspectiva no sentido de compreender empaticamente as motivações residentes na práxis cocotidiana, lar-doce-lar do objeto feminista. E, não tendo eu sociological blues suficiente para dar conta do simbólico, fixo-me na estética, que acaba por responder meus questionamentos mais hermenêuticos. Assim, cri na análise do vestuário para objeto destas linhas carcomidas por preconceitos de gênero conscientes.
Em se tratando a aula de um processo ritual, ainda que cocotidiano, para melhor compreendê-lo eu opto por um agente envolvido. Escolhi a professora por ser quem dá o tom da ritualística, por determinar seu clímax [dando o ritual por encerrado], quem está em pé – o que evidencia o objeto cosmético: ela –, além de contar com um irritante sotaque estadunidense que na certa merece um castigo como esse.
A professora está – começando pela cabeça, como sugere o intercurso antifeminista – com um óculos preto, discreto, quase charmoso. O pescoço está desnudo, mas não observei estranhamento dos presentes. Ela usa [pasmem!] uma camisa rosa e uma jaqueta vermelha, o que não combina nem aqui nem na China. Nem nos esteites.¹
Dando seqüência à nossa discussão superficial e linear-vertical da vestuarística, tenho o pesar em dizer que sobre isso vai ainda um casaco preto: a moldura infame do conjunto demodê supracitado. Descendo em nosso nível epistemológico, a respeito das peças íntimas não posso dizer nada; nem se vai coberta por uma langerri, já que a professora veste uma calça dins cigarrete² azul que se afunila da delgada cintura até o sapato marrom de cadarços caramelos.
Lembro ao leitor que em nosso exercício de análise não convém considerá-la uma aberração. Há de ter sentido funcional no meio que em que vive. E agora me veio na cabeça a função da burca...
Os alunos, como são chamados os demais atores do ritual, fazem-se absolutamente passivos. Alguns entraram em transe e mantinham-se acordados por pouco tempo. Um deles, especialmente absorto, disse-me algo como ‘a matéria é obrigatória’. Pareceu-me algo como uma carga horária compulsória onde dever-se-ia aprender coisas úteis como a mesóclise, mas usa-se de tortura e chantagem para impor condições de manutenção social naquela comunidade.³
Continuando nossa vereda estética-hermenêutica, detenho-me enfim nas expressões corporais do nosso objeto docente. Embora tenha ajeitado a franja uma ou duas vezes, não a encaixo no clã emo4 por ter cabelo crespo [a classificação, me parece, é biologizante, meramente]. O olhar é sempre baixo e fixo, quase psicopatológico, o que deve estar relacionado às vestes ligeiramente comentadas. O mesmo deve ainda justificar a ocorrência do posicionamento dos braços como um tiranossauro reques.
Concluo este pequeno e mui objetivo olhar sobre a professora, que nos possibilitou eficaz compreensão do ethos feminista. Seguramente, nem o tema abordado nem o presente clichê estão esgotados. Na certa, há ainda amplo guarda-roupa a ser matizado por essa corrente de impacto cosmético, de fundamental importância para a compreensão sociovirtual.


¹PEGURSKI, Carlos A., Tratado Antropológico Universal das Vestes Sobreutilitaristas, Ed. Bohemia, 2008.
²Grato à amiga Wemily por me explicar o que é uma cigarrete, isso lá pelos idos de mil novecentos e bala zequinha.
³Precisaria ir mais à faculdade para assegurar esse fato.
4Sobre os emos, consultar FRANCO, César B., Diário de um Adolescente Interiorano, Ed. Miguximpresso, 2008.

domingo, 18 de maio de 2008

Rua da Saudade


Cidade pequena...

...e suas ruas da saudade


Cidade pequena tem muita coisa para a infância-juventude de uma pessoa que só quem lá mora pode entender. O grande prazer de morar num lugar assim, de tímidos prédios a surgir no horizonte – que tem como fundo o campo - e de ruas centrais de faixa única, não é o fato de você conhecer grande parte das pessoas. Na verdade, isso é o pior da cidade pequena; sente-se observado o tempo todo e sabe, que o que fizer em público e até no privado, vai ser realmente público no dia seguinte. O bom de morar num pequeno aglomerado urbano de interior é saber que por mais que não haja necessidade de saber o nome das ruas - afinal, a melhor referência é o banco, a loja ou o mercado – você pode nomear cada uma delas de acordo com acontecimentos de sua vida. Quando pela noite anda-se por ruas que te remetem a sua própria história, isso sim é a verdadeira intimidade do interior; não uma relação íntima entre você e um outro, mas entre você e aquela cidade que para sempre levará um pouco de ti.


Em algumas ruas você encontra o lugar das primeiras lições, a construção onde foi sua escola e que hoje você já não reconhece mais; mas lá ainda tem salas de aulas metamorfoseadas que guardam também uma essência de você, da manhã que tirou uma nota boa, da tarde que ficou no mesmo grupo da menina bonitinha que sentava a sua frente, da noite que achou no bolso um bilhetinho romântico. Talvez a cantina já não exista, mas a rua detrás da escola onde recebeste o primeiro 'oi' de sua paixão escolar sempre vai existir.


Outras ruas, de arvores aladas e canteiros decorados, trazem as casas de quintais verdes, um campo para tantas partidas de futebol com amigos que hoje são estranhos. Trazem também as casas que, uma ou outra, um dia serviu de palco para festa de aniversário de 12 anos de seu colega, e que a partir daquele dia virou um grande companheiro. É a mesma rua que preserva a casa vazia desde sua partida; vazia de suas sujeiras, suas bagunça, mas sempre contendo – mesmo que seus futuros donos não saibam – as madrugadas de risos e confissões.


Tem as ruas das brigas e tensões que teve em sua vida até então curta. Mas a rua das palavras que voaram pelo ar só para ofender seu amigo é a mesma rua em que depois andaram juntos, conversando sobre os desenhos, planejando longas tardes de jogos de tabuleiro quando terminassem as tarefas escolares. A mesma rua que andaram lado a lado enquanto seus orgulhos permitiram.


Uma das poucas avenidas contém algo de 3 anos, 36 meses, em que virou rotina fazer aquele caminho de bicicleta apostando corrida com seus pares a caminho da escola; por mais que hoje, quando eventualmente passar por lá você passe de carro, vai sempre lembrar dos dias especiais, de alguns tombos, das conversas ofegantes, dos dias frios em que se usava luva para aquecer os dedos; e você ainda vai lembrar o cheiro da luva, e o arder de seu rosto quente em encontro com o vento frio da ladeira em que as rodas da bicicleta giravam sem parar impulsionadas pelas suas pedaladas.


Mas muitas ruas trazem as bicicletas e lembram ainda os finais de semana em que não tinha diversão igual a andar de bicicleta por aí. Coisa de cidade pequena talvez, coisa antes da invasão em massa da internet provavelmente. Aqueles que andavam do seu lado já estão em lugares desconhecidos hoje, a garota por quem você se apaixonou e também estava lá, hoje igualmente está perdida pela distância, mas a rua em que você caiu da bicicleta tentando impressiona-la ainda permanece.


Muitas ruas poderiam tem nomes ligados a garotas. Não que sejas mulherengo ou coisa do tipo, mas por que aquelas ruas sempre conspiraram para te marcar sob um nome feminino. A via transversal, em frente a um consultório médico e atrás da quadra de esportes, seria a rua do primeiro beijo, tímido e desajeitado. O muro que serviu de apoio a mãos trêmulas ainda está lá. Há ruas que lembram pequenos e não menos importantes momentos de sua vida sentimental. A rua da praça em que, frente a ela, tinha lojinha onde comprou um anel, de pedras vermelhas e inocentemente baratas, para dar a sua primeira paixão. Você nunca deu o anel, a loja fechou, mas até hoje a rua lembra o nome de sua paixonite juvenil. Há até a rua que, por graça do acaso, conserva ainda o pé de manga onde depois de ter suas palavras de amor ignoradas, jogadas ao vento, deitou-se na calçada em uma madrugada e repetiu o nome da garota tantas vezes até que começou a não querer dize-lo nunca mais; mas o nome ainda está lá, junto da rua.


Talvez sejam ruas fascinantes por que presenciaram a maior parte de sua vida pré-responsabilidades. Mas teve também a rua do alistamento militar, a rua da biblioteca na qual passou horas estudando para o vestibular, a rua que perguntou-se dos grandes porquês do mundo e frustrou-se por sequer entende-los. Houve a rua que olhou para o céu e pensou no colega falecido.


Realmente não sabes o nome daquelas ruas, mas lembras de cada uma delas, e lembras tanto que com toda certeza o nome de algum figurão ou dito herói brasileiro não poderia jamais conter todo seu valor; até prefere não saber se eram ruas de príncipes, barões, estados ou países, gosta de lembrar delas por suas adjetivações e personificações. Por isso se um dia lá voltar, onde quer que vá, saberá que todas as ruas serão ruas suas e de mais ninguém; ruas pessoais e próprias de tua existência. Indo ao mercado ou a rodoviária, serão todas, sem exceção nenhuma, ruas com nome Saudade. Não foram só coisas boas que lá viveu, mas grande parte do que é hoje, tem suas raízes em ruas estreitas, pequenas e que quando unidas, essas pequenas ruelas dão corpo à uma pequena cidade interiorana. Dão corpo a ti mesmo.




quarta-feira, 14 de maio de 2008

Rrrrãc-pfu: beabá e blablablá

Certa vez, ainda no meu colégio de primeira quarta, ao formarmos fila, a diretora nos deu um sermão repreendendo o ato de cuspir na cara do coleguinha – o que havia ocorrido sem nenhum clima de coleguismo. Disse ela:
- Foi isso que os soldados romanos fizeram pra Jesus. Eles cuspiram na cara de Jesus. Vejam como isso é feio!
Alguns olhavam pra cima. Imagino que um procurava enxergar a diretora por cima do ombro do menino da frente, que, mais alto, foi posto ali por descuido da professora. Vai ver que uns mexiam nos bolsos. Outros se cutucavam.
Eu pensava que se tudo isso fosse verdade, tivessem mesmo feito isso com ele e refeito na Escola Arapongas, Jesus devia estar muito triste conosco. E que ele devia sentir qualquer coisa de muito grande pela gente pra continuar gostando de nós.

E daí que do outro lado do mundo os chineses proibiram os dois terços restantes a cuspir durante a Olimpíada - papelão amarelo. Vai ver é preocupação ambiental.
A infração é passível de multa que varia de acordo com a radioatividade do catarro. E de sermão em fila.

terça-feira, 6 de maio de 2008

Etnografia de um sábado pela manhã

Começo pela etimologia. Em termos aurelianos, etnografia [do Gr. éthnos, raça + graph, r. de graphein, descrever] significa “ciência que estuda os povos, suas origens, suas línguas, religiões e costumes, a partir da forma como se vive o sábado pela manhã.”
Porém, soube por outra fonte – um tanto menos confiável que a do pequeno-burguês radical grego, é verdade – que o termo etnografia significa “puta leitura inútil, obsoleta que o diacho, mais chata que ata de reunião de condomínio”.
Sobre tal contenda filológica eu não me atenho. Apostaria na segunda hipótese por razões empíricas, mas prefiro não levantar bandeira alguma. Meu ofício [sic] é esmiuçar mesquinharias, não rejeitá-las tão facilmente, mesmo porque um dia elas hão de ser convenientes.
E esse dia chegou: a partir do sábado de manhã de uma data escolhida a dedo, conceito gregoriano¹ [quiçá aristotélico], dissertarei acerca das construções sociais que simbolicamente permeiam o meio cultural² observado.
O sábado em questão [a saber, três de maio] começou com o atraso do Elias – não confundir esse papo todo com antropologia. Elias é filho do meio, criado em métodos normais, de uma família equilibrada e sensata, imbuída do conceito de prosperidade, muito trabalhadora, além de ser neto de duas avós deveras capitalistas: enfim, Elias é a figura que foi classificada visionariamente por Weber como o protestante ideal. Aliás, deve ser mesmo ideal, uma vez que é claramente observável que dispõe de uma rede de contatos muito maior e melhor que os outros agentes desse relato. Houve momentos inclusive em que Elias provou ser o macho-alfa supremo no grupo usando de seu orcute³ para coerção das outras pessoas do grupo que, tamanha era a legitimidade transcendente que viam em Elias, submetiam-se a uma dominação tipologicamente carismática.
Entre papos e sopapos, Elias e Pegurski [coadjuvante mimético] chegaram na casa de César. Nada de importante ocorreu lá, senão a descoberta, através de um telefonema, de que a Aline – o elemento xis: vem com açúcar, tempero e tudo o que há de bom4 – ainda estava dormindo.
Abro um parágrafo para considerar que, sendo a etnografia uma literatura sem qualquer tipo de regulamentação da sensatez, permito-me dizer que essa comunidade lembra o conto dos três porquinhos. César, Pegurski e Elias são os ditos suínos. Suínos com muita graça e donaire. Já o lobo mal é o Marechal [ausente desta passagem por estar em curso, conta-se]. E a Aline é o vento que o lobo mal faz: não dá pra dizer que não existe, mas ninguém vê; só quem sabe quando ela vem ou não é o lobo mal; e aí por diante.
Desamparados pela deslealdade do vento preguiçoso, saíram os heróis desta etnografia barata – dessa vez porcos, não índios – para tomar café. Por limitações da espécie, após muito correrem [o que embriagou César de nostalgia], acabaram no pátio em que são criados. Tiraram fotos: limitação da natureza de Elias. E almoçaram a lavagem cotidiana. E tomaram um café, após isso.
Não rolaram na lama, mas foram estupidamente felizes.
E não obstante isso, termino essa etnografia agora por diversas razões: em primeiro lugar, porque não tem mais nada pra contar; em segundo lugar, porque ela já foi propositiva em demasia, em se tratando de etnografia; e enfim, porque leitor nenhum, de blogue nenhum, de lugar nenhum, de curso nenhum, de natureza nenhuma teria saco de terminar a leitura.

Em tempo: para ninguém ficar desorientado, joguei uma moeda pra cima e caiu cara. Ou seja, essa foi uma leitura funcionalista.


¹ Gregoriano é sinônimo de grego, como se sabe. Não confundir com a técnica vocal demodê.
² Social, não: cultural.
³ Sítio amplamente utilizado no início do Séc. XXI. Ver: PEGURSKI, Carlos. As 10 Piores Manias do Homem Moderno Bitolado. Ed. Bohemia, 2008.
4 Ver http://br.youtube.com/watch?v=vqbliGBgsrE