sábado, 24 de maio de 2008

Aos amigos de Comores

Em especial àqueles que são humanos e o demonstram

Conhece Comores?
Comores é um discreto arquipélago ao sudeste do continente africano. Lá pelos idos de mil trezentos e bala Zequinha foi ocupada pelos árabes, o que determinou sua formação cultural e religiosa. No Século XVI, portugueses invadiram as ilhas – que ficam a caminho das Índias –, promoveram saques e destruíram a economia local. Desde então esteve sob domínio árabe e francês, até a proclamação da república. Uma das ilhas ainda se encontra sob domínio francês. As demais contam com sistema presidencialista – vitalício, praticamente. Além da instabilidade política, os comorenses sofrem com analfabetismo, desnutrição infantil, entre outros problemas.
Hoje, 24 de maio de 2008, comemora-se 30 anos da proclamação da República Islâmica de Comores.
E daí? Aí que está: daí que Comores somos nós e nossos badulaques, atabaques, luso-saques. Somos nós mesmos, senão por ofertarmos meia dúzia de itens específicos da lista de mercado da Coroa: ouro pro mês, uns troncos de pau-brasil, oportunidade territorial ímpar, um punhado de prata; e não esquecer daquela promoção barata de mão-de-obra.
E daí que pouco importa se eram muçulmanos, se eram cristãos, se não eram nada disso – aliás, hoje, o cristianismo é proibido em Comores. Pouco importa se eram vermelhos, pretos ou amarelos, antes dos sucessivos estupros pálidos. Pouco importa se caçavam, pescavam e colhiam desbravando o seu quintal cuidado pelos deuses ou se comiam à sorte da rede e de Alá. Pouco importa se éramos nós, se foi o nosso sangue que caiu, qual bandeira flamejava orgulhosa. Era gente, de carne, osso e um pouco mais, que conheceu a mais covarde selvageria. Criaturas vivas na rota da civilização que em um dia perdido foram o meio justificado pelo fim estrangeiro. Seres íntegros sucumbindo perante titãs com porretes de ferro. Pessoas, agentes transcendentes, atores históricos sentindo a essência da carne dilacerada por risos, urros, guinchos superficiais e ininteligíveis. Existências apagadas por monstros humanóides, viajantes em ilhas móveis empurradas por pano imensamente desenhado com cruzes púrpuras.

É evidente que a proclamação da república por si só em nada representa a libertação do povo comorense. Nós mesmos continuamos cerceados, subjulgados, espremidos entre dedos nortistas apontados em riste para nós. Seria ingênuo se felicitar e esperar reformas radicais a partir disso. Entretanto, a História nos prova seguidamente que as mudanças são graduais, que bem-estar social não se baixa por decreto – tampouco por revolução*. O processo de uma efetiva independência se constrói pouco a pouco, antes ao tempo do lápis [e da borracha] que ao tempo da caneta.
Os votos que faço a Comores no trigésimo são os mesmos que faço a nós. Que são os mesmos que faço aos estadunidenses, errantes conscientes; aos franceses, que teimam na gafe; aos portugueses, que nada são além do século XVIII; aos cubanos, que erram ineditamente; aos chineses, que prometem errar. E que são os mesmos que faço aos muçulmanos, que já são a maioria de errantes; aos cristãos, errantes seculares; às boas e más pessoas, ainda errantes.
Navegar é preciso. Ser empático também é preciso.



*Dedico a presente nota à Aline: ambos questionamos a
educação que forma médicos em pencas mas não permitiria que eu publicasse esse
mesmo texto por a internete não ser liberada para domicílios.

7 comentários:

Vinícius disse...

meu deus a sua escrita o é...

um dia quem sabe no xaxim ou mais distante bem mais distante desse ventre preso que vivemos...um galpão 10 x 10...

à carlin...

Aline disse...

Li, tenho algumas questões ideológicas lógicas, um tal de status quo que sempre rege a sociedade e milhares de mortos mundo a fora.
Você ao menos viraria o reflexo positivo dos acontecimentos, não fosse a inutilidade humana [ainda mais em ciências sociais - que se quer tem lugar definido no mundo] frente ao caos. Palavras bonitas e sonhos todos temos. Ao que tange a vida - não nos resta muito a não ser leva-la e se te toca tanto essas questões - o seu fado é alinhar-se de modo a mudar algo. Palavras todo mundo tem.
Quanto a nota de rodapé, fico muitíssimo grata. Se não tenho monografias e doutorados em meu nome, uma nota de rodapé me é bem gratificante.

=)

Soo Carlos. Vai-te ser gauche no mundo! Vai!

Thiago Elias disse...

Comentário Aline, comentário, não texto. Acho que você fico com inveja por não ser convidada para publicar seus textos neste pequeno espaço subjetivo (é só brincadeira, antes que eu comece a ficar ouvindo reclamações já vou me desculpando).


Carlos, fantástico texto, de conclusão, ao meu ver, confusa e pouco explicativa, mas foi muito bom para a reflexão. Eu ignorava a existência de Comores, acho que a colonização muçulmana ta,bém não deve ter sido apenas positiva, e acho que merecia maior atenção (ou critica no texto), mas enfim sempre me estresso de pensar em colonização e tal poruqe ela está ainda em voga e nos afeta dia-após-dia enquanto nossos colonizadores ainda se beneficiam daqueles tempos.

Espero que um dia as palavras e os sonhos sejam uma arma poderosa contra a injustiça...

Anônimo disse...

Espero que as palavras e os sonhos saiam do papel e das mentes e se tornem atitudes ;P

Lívia disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Lívia disse...

Um pouco prolixo - ou melhor, um tanto quanto subjetivo para um texto de caráter dissertativo. Mas faz pensar - analisar a história deve ser o melhor meio de pensar no futuro. E no presente.
Independência é mais que uma simples palavra. Bem-estar social é algo que leva tempo para ser atingido.
Lá longe, Comores. Aqui ao lado, Brasil. :)

Zé Luiz Sykacz disse...

Belo texto amigo, belo texto...

É curioso (e sobretudo imensamente triste) observar que dentre tantas mazelas que assolam a humanidade, talvez a do povo de Comores passe desapercebida pelo resto do mundo. Eu por exemplo, admito que não conhecia tais acontecimentos.

Aliás, o que não faltam no mundo são dramas e histórias tristes.

Admito que diante de tantas situações como essa, o que eu sinto é uma enorme impotência. Uma absoluta falta de esperança.

Tudo o que a humanidade me inspira é, infelizmente, pessimismo.

Tomara que algum dia eu descubra estar errado.