domingo, 18 de maio de 2008

Rua da Saudade


Cidade pequena...

...e suas ruas da saudade


Cidade pequena tem muita coisa para a infância-juventude de uma pessoa que só quem lá mora pode entender. O grande prazer de morar num lugar assim, de tímidos prédios a surgir no horizonte – que tem como fundo o campo - e de ruas centrais de faixa única, não é o fato de você conhecer grande parte das pessoas. Na verdade, isso é o pior da cidade pequena; sente-se observado o tempo todo e sabe, que o que fizer em público e até no privado, vai ser realmente público no dia seguinte. O bom de morar num pequeno aglomerado urbano de interior é saber que por mais que não haja necessidade de saber o nome das ruas - afinal, a melhor referência é o banco, a loja ou o mercado – você pode nomear cada uma delas de acordo com acontecimentos de sua vida. Quando pela noite anda-se por ruas que te remetem a sua própria história, isso sim é a verdadeira intimidade do interior; não uma relação íntima entre você e um outro, mas entre você e aquela cidade que para sempre levará um pouco de ti.


Em algumas ruas você encontra o lugar das primeiras lições, a construção onde foi sua escola e que hoje você já não reconhece mais; mas lá ainda tem salas de aulas metamorfoseadas que guardam também uma essência de você, da manhã que tirou uma nota boa, da tarde que ficou no mesmo grupo da menina bonitinha que sentava a sua frente, da noite que achou no bolso um bilhetinho romântico. Talvez a cantina já não exista, mas a rua detrás da escola onde recebeste o primeiro 'oi' de sua paixão escolar sempre vai existir.


Outras ruas, de arvores aladas e canteiros decorados, trazem as casas de quintais verdes, um campo para tantas partidas de futebol com amigos que hoje são estranhos. Trazem também as casas que, uma ou outra, um dia serviu de palco para festa de aniversário de 12 anos de seu colega, e que a partir daquele dia virou um grande companheiro. É a mesma rua que preserva a casa vazia desde sua partida; vazia de suas sujeiras, suas bagunça, mas sempre contendo – mesmo que seus futuros donos não saibam – as madrugadas de risos e confissões.


Tem as ruas das brigas e tensões que teve em sua vida até então curta. Mas a rua das palavras que voaram pelo ar só para ofender seu amigo é a mesma rua em que depois andaram juntos, conversando sobre os desenhos, planejando longas tardes de jogos de tabuleiro quando terminassem as tarefas escolares. A mesma rua que andaram lado a lado enquanto seus orgulhos permitiram.


Uma das poucas avenidas contém algo de 3 anos, 36 meses, em que virou rotina fazer aquele caminho de bicicleta apostando corrida com seus pares a caminho da escola; por mais que hoje, quando eventualmente passar por lá você passe de carro, vai sempre lembrar dos dias especiais, de alguns tombos, das conversas ofegantes, dos dias frios em que se usava luva para aquecer os dedos; e você ainda vai lembrar o cheiro da luva, e o arder de seu rosto quente em encontro com o vento frio da ladeira em que as rodas da bicicleta giravam sem parar impulsionadas pelas suas pedaladas.


Mas muitas ruas trazem as bicicletas e lembram ainda os finais de semana em que não tinha diversão igual a andar de bicicleta por aí. Coisa de cidade pequena talvez, coisa antes da invasão em massa da internet provavelmente. Aqueles que andavam do seu lado já estão em lugares desconhecidos hoje, a garota por quem você se apaixonou e também estava lá, hoje igualmente está perdida pela distância, mas a rua em que você caiu da bicicleta tentando impressiona-la ainda permanece.


Muitas ruas poderiam tem nomes ligados a garotas. Não que sejas mulherengo ou coisa do tipo, mas por que aquelas ruas sempre conspiraram para te marcar sob um nome feminino. A via transversal, em frente a um consultório médico e atrás da quadra de esportes, seria a rua do primeiro beijo, tímido e desajeitado. O muro que serviu de apoio a mãos trêmulas ainda está lá. Há ruas que lembram pequenos e não menos importantes momentos de sua vida sentimental. A rua da praça em que, frente a ela, tinha lojinha onde comprou um anel, de pedras vermelhas e inocentemente baratas, para dar a sua primeira paixão. Você nunca deu o anel, a loja fechou, mas até hoje a rua lembra o nome de sua paixonite juvenil. Há até a rua que, por graça do acaso, conserva ainda o pé de manga onde depois de ter suas palavras de amor ignoradas, jogadas ao vento, deitou-se na calçada em uma madrugada e repetiu o nome da garota tantas vezes até que começou a não querer dize-lo nunca mais; mas o nome ainda está lá, junto da rua.


Talvez sejam ruas fascinantes por que presenciaram a maior parte de sua vida pré-responsabilidades. Mas teve também a rua do alistamento militar, a rua da biblioteca na qual passou horas estudando para o vestibular, a rua que perguntou-se dos grandes porquês do mundo e frustrou-se por sequer entende-los. Houve a rua que olhou para o céu e pensou no colega falecido.


Realmente não sabes o nome daquelas ruas, mas lembras de cada uma delas, e lembras tanto que com toda certeza o nome de algum figurão ou dito herói brasileiro não poderia jamais conter todo seu valor; até prefere não saber se eram ruas de príncipes, barões, estados ou países, gosta de lembrar delas por suas adjetivações e personificações. Por isso se um dia lá voltar, onde quer que vá, saberá que todas as ruas serão ruas suas e de mais ninguém; ruas pessoais e próprias de tua existência. Indo ao mercado ou a rodoviária, serão todas, sem exceção nenhuma, ruas com nome Saudade. Não foram só coisas boas que lá viveu, mas grande parte do que é hoje, tem suas raízes em ruas estreitas, pequenas e que quando unidas, essas pequenas ruelas dão corpo à uma pequena cidade interiorana. Dão corpo a ti mesmo.




7 comentários:

Aline disse...

Sabe o que é mais legal de vir aqui?
É que quando eu começo a ler, eu já sei exatamente qual dos três está escrevendo, nem preciso verificar a autoria...

Ah. Ruas da saudade. Acho que Hoje as coisas vão bem mais além de lugares físicos. Um dia coisas como um site, um cheiro, um respirar, um toque, um olhar, uma voz e tdo mais viram também saudade. Eles já não te pertencem, já não se são. Mas quando você olha, no fundo, mesmo que quase inóspito, ainda há a essência que te prendeu. Mas bem no fundo, quando a gente olha tudo, não é que eles viraram saudade... é a gente que se transforma nela.
Bonito texto César. =)

Carlos Pegurski disse...

Bonito mesmo, César. De tudo o que já foi publicado aqui e de tudo que já li seu, foi o texto mais bonito. O mais bucólico, sofrido, vivido, personificado. E me traz uma dialética: por um lado quem escreve é um eu que sou eu mesmo em última análise, tamanha a riqueza da experiência; por outro, tem tanta carga subjetiva, uma individualidade tão autêntica que imprime o ímpar incorrigivelmente. Sou seu fã, cara! o/

Anônimo disse...

muito lindo! encontrei o blog por acaso e este texto foi disparado o melhor. o que mais gostei, o que mais me fez lembrar da infancia e juventude. nao mudaria uma palavra sequer nele, ta perfeito! obrigada, nao poderia descrever melhor o que eu sinto sobre os lugares onde estive.
parabens!!

Carlos Pegurski disse...

Quem será que foi o César que comentou aqui em cima?

Thiago Elias disse...

Putz tinha feito um comentario muito bonito e em vez de colocar publicar cliquei visualizar e sai da pagina.

Nunca mais acharei as palavras mas só pra reinterar que o texto tá fantástico César parabéns...

Gabriela disse...

Ótimo texto! Realmente muito bonito! :)
Imagino como esse sentimento deve se intensificar no interior.
Eu que sempre estive na capital, no caos, posso dizer que tenho minhas ruas. Ruas em que passo até hoje. E só parar um pouquinho pra reativar as lembranças de cada esquina, de cada pedacinho. E a gente acaba virando um pouquinho de tudo o que já viveu.
Como diria o grande Rosa: Saudade é ser, depois de ter. ;)

Lívia disse...

Provavelmente a interpretação será única para cada leitor (como em todo texto), mas é impossível não se identificar com pelo menos algumas partes.
Saudades são o que fica.
Maravilhoso. (: