quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Lugar de gente feliz

Hoje fui a um minimercado comprar algumas coisinhas.

Parêntese: esse minimercado está longe de ser o armazém de bairro de outrora e muito longe de ser uma grande rede de supermercados, como o Pão de Açúcar. E há uma regra diferente que rege os mercados nesse mundo pós-moderno. Antes era: normalmente cresce, raramente quebra. Agora é: raramente é comprado por um maior, normalmente quebra.

Engraçado. O Pão de Açúcar só quebraria no século XVI, quando era feito pra isso: moída a cana, colocava-se o caldo dentro de uma forma de barro com esse nome. Que sorte: o pão de açúcar descansava por 45 dias, diferentemente dos escravos. Depoimento do padre jesuíta Fernão Cardim, naquele século:

Cada engenho é uma máquina e fábrica incrível. Em cada um, de ordinário há seis, oito ou mais brancos e, ao menos, 60 escravos, que se requerem para o serviço. Os trapiches,engenhos que moem a cana com bois, requerem 60 bois, os quais moem de doze em doze, revezados: começa-se de ordinário a tarefa à meia noite e acaba-se no dia seguinte às três ou quatro horas depois do meio dia. Em cada tarefa se deita 60 a 70 formas de açúcar branco e mascavo. Cada forma tem mais de meia arroba. Os serventes andam correndo, e por isso morrem muitos escravos.

Ao que interessa: comprei feijão, alface, beterraba, couve, refri, tomate, cheiro-verde e pão. O que interessa nesse momento é o pão. Aliás, o pão já interessava faz tempo.

Pedi:

- Moça, quer me ver seis pães?

Muito doce, respondeu:

- Querer ver, não quero.

Gentil, continuei:

- Então me sirva sem ver!

Não soou nada gentil. Ela dissimulou, mas não gostou. Nem eu gostaria, creio. Piada sem sal, né?

O conceito de servidão ainda parece ser um completo tabu para o senso comum. Em nossa sociedade, ele se encaixa entre dois discursos distantes (idealmente) e próximos (historicamente), paradoxalmente: o discurso religioso e o discurso escravocrata. O discurso religioso lamentavelmente não costuma sair das casas de Cristo. Logo, o que resta para a sociedade secular é o secular conceito de servir como algo pejorativo, humilhante.

A moça abaixou a cabeça. Não me olhou mais nos olhos. Tudo o que vi foi uma toca de proteção e um avental, feitos de um algodão maranhense grosseiro, atrás de um tabuleiro repleto de pães de açúcar.

Dúvida de mercado: não quebra porque é comprado ou é comprado porque não quebra?

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

A bolha e o visco

Quando fiquei sabendo daquele ataque a alguns jovens na Avenida Paulista, algo com prováveis motivações homofóbicas, fiquei pensando na coisa toda, principalmente nessa aversão dos héteros contra os homos.

E o mais próximo que cheguei de uma conclusão, com certa ironia, foi de que todo hétero conta, lá no fundo, receber uma cantada dos homos. Não apenas uma cantada; dão como evidente que se o outro é homo, ele certamente, necessariamente, e inevitavelmente, irá cair matando com indiretas, olhares e xavecos em cima de todo hétero.

E o perverso da história é que quem cai matando, agora literalmente, são alguns héteros, com lâmpadas e pontapés.

Mais: se o homo eventualmente deixar claro que não tem interesse nenhum, o hétero vai ficar algum tanto ressentido pela expectativa frustrada!

Generalizações são complicadas, como sempre, mas creio que isso tem certa validade genérica.

Parece ser algo ensinado – escola? família? -, não sei. Mas o teste para tirar a prova é simples. Pergunte a um homem hétero o que ele acha de ter amigos gays. 'Ah, nada contra, desde que não venha com viadagem pro meu lado!'. Bingo. É um pressuposto que, sendo você hétero, e sendo o outro homo, potencialmente, quase naturalmente, ele vai 'ir de viadagem' para seu lado.

Nós héteros, com maior ou menor vergonha, já demos essa resposta um dia.

Vaidade masculina ou uma paranoia institucionalizada?

Lendo sobre o tal ataque aos jovens na Avenida Paulista percebi que podemos até nos revoltar. Aliás, a indignação nessas horas deve vir. Porém, não dá para dizer coisas do tipo nossa, que estranho isso acontecer. Ou então defender a tese de que é inexplicável esse tipo de violência, quase caída dum céu nebuloso.

É algo excessivamente comum, previsível e explicável.

Não tanto pelos motivos – que por serem culturais não são menos fugidios -, mas sim pelos sintomas. Eles se manifestam no dia a dia, sutis ou não. Bomba relógio prestes a explodir. E parece que a lógica dessa violência tem a ver com uma ideia de pureza particularmente desenvolvida na cabeça de alguns homens.

Sim, pois o que alguns héteros cultivam, ainda, é um ideal de pureza. Ele é do tipo de uma bolha de ar num raio de alguns metros em torno desse homem, e a pureza neste espaço tem de ser mantida. Caso não seja, tem-se um problema.

Trata-se de uma pureza heterossexual. O límpido e translúcido é formado por tudo aquilo que representa, ou contém, a dobradinha homem + mulher. É o puro. Mas tudo que igualmente possa representar ou conter a dobradinha homem + homem é simplesmente sujo, repugnante. Talvez viscoso.

E digo viscoso não a toa. É um termo completo neste caso. Simboliza o que é incerto, fluido, pegajoso, aquilo que uma vez que se entre em contato com, não se sabe se esse contato será interrompido.

E se o treco grudar de vez?

Acho ser uma boa metáfora para explicar a desconfiança violenta de alguns héteros contra os homos. Que nada viscoso ultrapasse a barreira de segurança...

Meu professor faria graça e diria, sei não, tem cheiro de desejo mal resolvido.

Se tem, não sei. Só sei que poucas são as violências que se justificam. E a do tipo homofóbica certamente não é uma delas.

Se os rótulos em si já tem um quê de estúpidos, agredir por conta deles é o que?

sábado, 13 de novembro de 2010

As Ciências Sociais ( me formei \0/ ... e agora? o_0 )



4 anos e meio depois do fatídico rito de passagem do vestibular, eu me formei em ciências sociais! Não, isso não faz de mim um socialista (apesar de assim eu me definir política-ideologicamente) mas sim um cientista social, ou um sociólogo, como queiram. “Que legal, o quê que você faz?” No momento desempregado, e sim, provavelmente em algum momento da vida eu terei que dar aulas, mas agora já estou até gostando da idéia. Pois bem, a idéia deste texto não era falar das coisas práticas da conclusão de um curso de graduação, mas sim de alguns momentos pelos quais passei e coisas que eu senti (afinal isto ainda é um blog).

Em primeiro lugar, não importa o quanto te avisem que é um curso extremamente teórico e que exige muita leitura, você nunca está suficientemente preparado! Chegou em determinados momentos a ter cerca de 200 páginas de leitura por semana, e não era aquela leitura agradável do tipo Fernando Sabino, Arthur Conan Doyle ou Jonathan Swift, mas leituras complexas, e mais, fichamentos, trabalhos, participação em sala (blergh), seminários...A monografia então foi pior, sim foi pior do que todos dizem que é! O pior ainda porque quando eu estava escrevendo-a estava trabalhando, num desses empregos normais de 8 horas por dia e salário de fome no fim do mês, e tinha aula a noite, e monografia de madrugada.

Pois bem, sobrevivemos! Olhando em retrospecto há quem diga (né César) que eu tive mais sorte do que juízo, porque neste jeito manso de ser muitas vezes levei as coisas com a barriga e mesmo assim tirei ótimas notas, das duas uma, ou eu tinha uma grande imaginação sociológica ou boa parte das matérias e professores eram picaretas (prefiro acreditar na segunda opção).

Agora o que realmente nos atormente neste curso, o que nos desmotiva e impede de lutar a boa batalha são a dúvidas existenciais que ele te apresenta, e que você invariavelmente interioriza. Não sei se é possível descrever o que é cansaço mental, mas é algo que, diferente do cansaço físico, não passa após uma boa noite de sono. Alias, muitas vezes perdemos o sono nos debruçando sobre as questões mais variadas, repensando conceitos que tínhamos como certo tentando achar uma solução, definir a teoria mais plausível para acreditar. Afinal o nosso instrumento de trabalho são as palavras, e há autores que usam as mesma palavras para dizer coisas diametralmente opostas e não há como apenas aprender sem definir acreditar em uma ou outra.

Eu gostava de ficar olhando pela janela do nono andar (ou do sexto mesmo) da reitoria, da UFPR ver as pessoas pequenas lá embaixo e ficar conjecturando alguma teoria que fizesse sentido que desse conta de explicar a religião, a ciência, o amor, a paixão, o ódio, a evolução (não me surpreende que as pessoas me considerem tão confuso, dado meuinconstante estado mental). É difícil ser cristão/protestante (evangélico, para alguns) militante e entrar num curso desses, é estranho ter que questionar o tempo inteiro sua fé, suas tradições, seus ritos, e olhá-lo como mais um rito.

Mas nem tudo foi tão nebuloso assim, afinal foi nesse tempo que conheci, pessoas incríveis (certo Carlos, Aline, César, Taute) com que fiz amizade, alias dois deles até toparam fazer um blog comigo e de repente desapareceram dele. Infelizmente, ou felizmente pra eles, apenas o César concluiu o curso também, alias me dando muita força (no sentido da praxis - trabalhos, provas, seminários) pra continuar.

Enfim, é realmente estranho estar formado, a gente fica com uma sensação que não aprendeu nada, mas no fim tenho pra mim que a coisa mais importante que aprendi nesse curso é conferir o mesmo status a todo o tipo de discurso. É muito bom desconstruir a legitimidade da ciência (até mesmo das ciências sociais) como discurso hegemônico capaz de explicar tudo e todos, e perceber que cada pessoa constrói uma visão de mundo única e tão capaz de explicar sua realidade quanto um tratado de milhares de páginas que nunca será aberto. É interessante ser capaz de entender razões econômicas, egoístas que perpassam todo o tipo de acontecimento. E muito mais desafiador é procurar algo que seja feito com alma (mesmo que essa seja uma construção de um discurso moderno ocidental e individualista) no meio de tudo isto.

Por fim durante a colação de grau fizemos o juramento de nos importarmos sempre em nosso trabalho com a questão social, e realmente acredito que nada no mundo faz sentido se não nos importarmos com os outros antes de pensarmos em nós. Afinal a própria Biblia afirma, ironicamente no livro de Tiago (1:27), "Para Deus, o Pai, a religião pura e verdadeira é esta: ajudar os orfãos e as viúvas em suas aflições e não se manchar com as coisas más deste mundo".


Amém...

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Chuva


Estava eu a voltar para casa, num dia daqueles bem devagar. Começou um chuva que já era anunciada pelo céu cinza.

Caia devagar, eu conseguia contar os pingos que me acertavam -1...2...3,4,5...- eram daqueles pingos grossos que parecem explodir quando caem no chão. Passei a reparar nas pessoas, lentamente retiravam os guarda-chuvas da mochila, as sombrinhas das bolsas, ou simplesmente colocavam o casaco na cabeça. Os comerciantes tiravam as placas de propaganda da rua, tiravam as caixas de som das entradas das farmácias, lojas de roupa, etc.

A manhã tornavasse silenciosa, as filas dos bancos moviam-se lentamente para baixo das marquises. A frequencia dos pingos aumentava rapidamente, logo sentia a água fria escorrendo pelo meu cabelo, a blusa ficando encharcada, preferi não ir para baixo das marquises, estavam lotadas, e de qualquer forma seria um desrespeito para com a chuva.

Fiquei no meio da calçada, pensando com os meu botões "Ah se a chuva pudesse lavar essa falsidade, lavar a minha hipocrisia! Ah se essa calçada me levasse pra outro lugar!"

terça-feira, 22 de junho de 2010

o Funk e o Funk

Alguns dos leitores deste bom e velho blog subversivo e comunista bem sabem que meu sonho, e o que faço a maior parte do tempo é tocar guitarra. Isso dado, há uma série de implicações, por exemplo, leio diversas revistas de guitarra. Relendo uma edição ultrapassadérrima de março de 2007 de uma das grandes publicações nacionais de guitarra vejo uma interessante reportagem sobre o funk. Sim, aquele funk de James Brown (Deus o tenha).

No fim da reportagem há uma critica duríssima à comparação existente entre o funk carioca e o funk ‘original’ de James Brown (até rima)! Pois bem, o escritor desta reportagem literalmente “desce o sarrafo” no ‘funk’ carioca, ou ao menos no fato de chamar o funk do morro de funk, assim como seu antecessor rico. Argumenta o rapaz, que isso é uma afronta ao estilo original por dois motivos principais: as letras pobres, e a música (harmonia, melodia) pobre.
Após ler isto me pus a pensar naquela música da James Brown:

“Get up, (get on up)
Get up, (get on up)
Stay on the scene, (get on up), like a sex machine, (get on up)”

O leitor deve concordar comigo que não há nada de muito construtivo/ profundo/ subjetivo/ introspectivo nessa música. Ao contrario, o objetivo é claro, fazer o ouvinte se chacoalhar (se é que ainda existe esta palavra) e a letra é obviamente de uma conotação sexual. Não vejo problema nisso. Alias como sociólogo (ou antropólogo) vejo estas manifestações culturais como um fato que tem um objetivo e uma causa. James Brown e toda a industria por trás dele, bem como os seus antecessores que lhe influenciaram, conseguiram chegar onde chegaram pois havia uma demanda por este tipo de música, havia espaço. Também se olharmos a musica pelo seu viés técnico não veremos nada de difícil ou complexo em sua construção: poucos acordes que se repetem por toda a canção, e um ritmo marcante.

Agora voltemos ao morro. Pelo que me lembro o funk era criticado por não ter uma música complexa e por suas letras de conotação sexual. No que ele difere mesmo do seu primo rico? Porque insistimos em louvar uma manifestação cultural estrangeira, bem localizada no ‘main-stream’ da indústria musical que tem por característica as mesmas marcas do estilo mais demonizado pelos ‘intelectuais’ do Brasil?

Algum tempo atrás li uma frase de um famoso produtor musical e ótimo guitarrista de jazz que afirmava ter criticado por muito tempo as musicas ditas ‘do povão’, mas com o tempo percebeu que se shows deste estilo conseguem levar mais de cem mil pessoas a um estádio é porque há algo ali que agrada outros seres humanos.

Se de fato o objetivo dos bailes funks é o sexo, as músicas de James Brown parecem funcionar na mesma lógica (não é a toa que volte-e-meia as festas de casamento tocam músicas como esta em questão e ‘YMCA’ do Village People).

Volto a indagar então o por quê do preconceito? Não digo que devemos admirar, chegar em casa e escutar este tipo de música, afinal cada um ouve o que gosta (ou o que a sociedade te fez gostar - só pra provocar um pouquinho os que se acham indivíduos descolados de um contexto sócio-cultural-) mas afirmo que este tipo de critica já é pessimamente construída é mostra o quanto prezamos por tudo o que é importado, pasteurizado e dado como bom pelas grandes meios de comunicação.

Em defesa do autor, ele afirma que de fato há vários músicos de qualidade que saíram da favela e de morros e cita alguns, ironicamente estes citados são pessoas que foram absorvidas pela industria musical brasileira. Mas ele falha de modo decisivo ao não perceber que há um contingente imenso da população que tem nesses funks elementos constitutivos do seu dia-a-dia, e que as musicas ou os bailes de fato transmitem alguma coisa para elas (nem que seja esperma – brincadeira, perco a linha de raciocínio mas não perco a piada). Seu caráter independente e tecnicamente tosco serve apenas para mostrar a o quão heróico e socialmente necessário e o funk, afinal ele não precisou ser produzido em estúdios caríssimos nem pasteurizado pelas mixagem que igualam todas as musicas para se tornar um sucesso.

E se o nome pegou é por que semelhança há. Faço minhas as palavras deMichael Moore ao presidente Bush, para o autor desta reportagem “Shame on you F.S., shame on you”.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Apontamentos antropológicos: o agroboy

Pelas contingências da vida - e certamente por algo relacionado às periódicas visitas a meus pais numa cidade interioranamente bucólica - acabei tendo várias oportunidades para observar antropologicamente uma complexa, dinâmica e complicada figura cultural chamada agroboy.

Bem, e o que é o agroboy? Para quem não está familiarizado com o cenário de pastos no horizonte, carroças que cruzam a cidade puxadas com força animal e quero-queros audíveis no fim de uma tarde, digamos que se o playboy é o filhinho de um papai médico, advogado ou empresário, o agroboy é o filhinho de um papai agricultor muito bem sucedido. Aqui pros lados do Norte do Paraná, ele é a típica prole da terra vermelha com a soja.

O agroboy é aquele sujeito que não quer o carrinho arredondado europeu, quer a camionete barulhenta das pradarias norte-americanas – é, bem aquela que corre ao lado de cavalos selvagens. Não se veste como a juventude utópica das novelas da Globo, mas sim como um cowboy saído diretamente de algum saloon que não existe senão enquanto representação de uma vontade coletiva; o agroboy usa as calças apertadas feito embalagem de café, cinto com uma fivela do tamanho da tampa de margarina, e suas camisas sempre deixam à mostra o peito – com ou sem cabelo... vale notar essa variável.

(Alias, procurando uma foto para este texto, descobri que o agroboy já esta sendo incorporado como um 'novo movimento cultural mundial'. Acredite se puder.)

A verdade é, e realidade foi, que fiquei arrependido por um ingresso já pago para um tal de Batidão Universitário – as vezes o bom senso da gente sofre umas recaídas e nos mete em cada situação... – e só por isso saiu a analise aqui transcrita. Como uma luz no fim do túnel, as capengas aulas de antropologia ofereceram um alento contra meu desespero. E tudo se encaixava para isso uma vez que o estranhamento - visual, auditivo e social - foi completo durante o tal do Batidão, e pude então ver o agroboy e logo em seu habitat social típico: uma festa de música sertaneja regada a álcool.

Mas, oras bolas, de onde surgiu o agroboy? E essa bizonhice – com o perdão da subjetividade exposta – chamada Batidão Universitário?

A cultura enquanto um quadro amplo nos lembra a máxima de Lavoisier: nada se perde, tudo se transforma. Assim, o agroboy é como o ponto intermediário da passagem do mundo rural ao mundo urbano. Ele incorpora as novidades mas sem abrir mão de certos resíduos e reminiscências. Ele é o mix pós-moderno da cultura de massas, consumismo, ensino superior, urbanidade e agropecuária. Cultura é mesmo um treco multiforme - ou seria, nesse caso, disforme?.

(Para quem se perguntou por que do Universitário, vale lembrar que tudo que carrega essa palavra passa as ser extremamente legítimo. Forró, funk, sertanejo ou sabe-se-la-mais-o-que, são coisas aceitas desde que venham com o universitário como adjetivo condicionante, e sem ele, seriam coisas bregas, toscas, sem noção, etecétara e tal)

Olhando para o agroboy como essa figura mixada, entendemos também o Batidão Universitário posto que o segundo só existe por causa do primeiro – enquanto origem e enquanto destino da demanda satisfeita – e também é um mix surreal. Pois no Batidão – aquelas longas, tortuosas, lentas e sofridas 4 horas de trabalho de campo – a viola e a cerveja se fundem com as batidas eletrônicas e o ecstasy. É a mistura (in)sensata de duas vontades: a de não largar o osso da tradição do campo, mas incorporando o que é moda na cidade. Em miúdos: mistura de música sertaneja intercalada com batidas eletrônicas – sim, isso existe, e gera a curiosa figura de um comboy que escarra no chão displicentemente e, em seguida, está se requebrando todo num tunts-tunts­ frenético, fazendo parte inclusive daquela multidão enchapelada que compartilha de um frisson quase ritualístico.

Enfim... depois de tão pífia análise, encerro o tormento do leitor com a lembrança do texto em que o Thiago certa vez aqui postou discutindo para que servia Ciências Sociais e concluindo serem elas um belo hobby.

Eu assino embaixo e emendo: hobby principalmente para situações adversas como um evento suspeitíssimo chamado Batidão Universitário tomado por agroboys.

domingo, 18 de abril de 2010

Ou isto ou aquilo

Vejam que coisa: por mais que o pensamento social tente aos poucos se desfazer do olhar dicotômico que marcou os séculos XIX e XX (creio que a dialética seja o maior exemplo disso), em mim esse viés persiste. Em mim e numa carrada de gente.

Entre o 0 e o 1 existem infinitos valores. No entanto, o fato é que, a nível de síntese teórica, tende-se mais ao 0 ou ao 1. Ou minhas estruturas psíquicas são anacrônicas, ou a realidade é de fato dialética. Ou ambos, sinteticamente.

Lembro que logo no primeiro semestre em que entrei em Ciências Sociais tivemos uma matéria chamada História das Revoluções. Ou algo assim. Lembro que o nome da professora era Judithe e que ela tinha idade para ser minha avó. Naquele semestre, lemos com ela apenas Revolução Francesa e Revolução Industrial. Por quê? Porque ela (embora cansada, ainda marxista) entendia que a primeira era responsável pela revolução ideológica que o mundo vive até os dias atuais, e a segunda pela revolução tecnológica que nos acompanha igualmente.

Apesar de ambas as revoluções serem fatos cujas gêneses remontem estruturalmente a fenômenos comuns, e embora as dicotomias sejam cada vez mais evitadas, como eu havia comentado, essa divisão epistemológica é analiticamente sensata. É preciso recortar o olhar, para otimizá-lo. É preciso até mesmo desenhar caricaturas, para melhor encontrar as características e causas determinantes do objeto de pesquisa. Como um primo meu me ensinou, “para arrumar um cubo mágico é necessário desarrumá-lo a partir de uma ordem prestabelecida e funcional”. Ou seja, a dicotomia é um logaritmo válido, na medida em que provisório, metodológico, distante da realidade factual. Ou resseja, ela não responde pelo mundo vivido.

Se pensarmos mais a fundo, todo o processo de aprendizagem e síntese que fazemos da realidade é organicamente metodológica. Afinal, a criança aprende sem saber que aprende, e aprende. Os animais aprendem sem saber que aprendem, e aprendem. Os povos ditos primitivos aprendem mesmo sem ter um sistema de formação de conhecimento formal, e aprendem. (Parêntese: se você não gosta da comparação entre criança, selvagem e animal, por mais razão que você tenha, isso não vem ao caso no momento. Logo, contenha-se). Sendo assim, nosso olhar perante a realidade – nossos julgamentos, nossos valores, nossos discursos, toda a mediação que fazemos entre o mundo pensado e o mundo vivido – passa por uma espécie de sistema orgânico de assimilação. Algo como um sistema operacional.

Enfim, pode ser que a tendência ao olhar dicotômico provenha justamente desse sistema natural e intrínseco, pelo qual não respondemos conscientemente. Por um lado, isso nos une à realidade, na medida em que nós próprios somos parte dela, dentre causas e efeitos, motivações e manifestações – deixamos de ser o protagonista e somos parte integrante do Todo. Por outro, nos afasta da realidade, na medida em que todo esse “sistema operacional” é virtualmente condicionado pelos determinantes culturais, definitivamente operantes.

E acabamos com uma dicotomia.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Luís e a Vida Positiva


Luis acordou cedo e bem disposto, na noite anterior havia decidido a não deixar mais nada lhe aborrecer, e que evitaria ficar bravo ou com raiva. Ele havia visto num programa de televisão as benesses que uma vida ‘positiva’ poderia lhe trazer, assim pesquisou na grande rede e freqüentou um ciclo de palestras duma instituição cujo emblema e o nome misturava filosofia, misticismo e biologia. Na noite anterior ele havia se formado num simpósio de dez semanas, com certificado e tudo, assinado por um parapsicólogo.

Preparou seu café, evitou colocar o açúcar, também havia aprendido como a alimentação saudável pode mudar o movimento do cosmos e fazer a manutenção da vida ‘positiva’. Comeu uma broa integral com queijo branco, qualquer pessoa em sã consciência acharia aquilo horrível, ele adorou. Fez a barba e se perfumou, sabia o quanto a boa apresentação é positiva para a percepção que as pessoas fazem de si. Tomou o ônibus um pouco mais cedo do que o de costume.

Logo que entrou no ônibus, teve sua primeira prova de paciência, o ônibus estava lotado. Respirou fundo, e fez como lhe ensinaram, pensou em um lugar bonito, voltou a concepção holística do universo entendeu todos os presentes ali como seus irmãos, procurou se colocar numa situação de empatia, e entender que todos ali tinham suas preocupações, e que se estavam ali provavelmente havia algo que os unia. Uma convergência de contextos, que gerou uma conjectura própria, com suas regras específicas e ele aceitava o papel de ser um cavaleiro numa cruzada para impor os princípios de respeito e amor naquele local. Assim, foi entrando no ônibus, pedindo licença e tentando ser o mais educado possível. Apesar de seus esforços só conseguia com que as pessoas bufassem quando ocorriam encontrões. Aos trancos e barrancos chegou até a cobradora. Como um bom representante da ‘filosofia da vida positiva’ havia deixado o dinheiro separado, em moedas, para facilitar o troco. Exatamente no momento em que pegou as moedas nas mãos o ônibus freou bruscamente, as moedas espalharam-se por todo o ônibus, pisoteadas por todos. Não havia a menor possibilidade de sequer pensar em junta-las. Uma raiva lhe subiu, mas ele conseguiu se controlar e evitou o xingão que estava prestes a bradar.

Respirou fundo, pensou em um lugar bonito, pegou a carteira. Deu bom dia a cobradora, ela olhou-o com desprezou e balbuciou qualquer coisa, o que só o fez aumentar a raiva. Só tinha uma nota de 50 reais na carteira, deu-a para a cobradora, ela retornou 20 reais de troco, ele ficou esperando o restante, ela apontou para a plaquinha na janela que dizia “Troco Máximo 20 reais”. Ou seja, pagou trinta reais numa viagem de 30 minutos. Pensou em reclamar, mas sabia que aquilo não cabia a quem queria levar uma vida positiva. Pagou, pensou em um lugar bonito, o número de arvores deste lugar diminuía em seus pensamentos, e os animais do lugar estavam ficando de mau humor também.

Entrou mais adentro no ônibus, as pessoas bufavam, mas não havia como passar sem empurrar, além do que todos o olhavam com desprezo por ter pago trinta reais na viagem. De repente ouve-se um barulho na parte da frente do ônibus, parecia que uma pessoa havia caído. Logo chegou a noticia, uma senhora velhinha tropeçou em uma série de moedas de cinco centavos, que um engomadinho havia derrubado! Todos a sua volta o olharam feio. Um deles perguntou “Pra que tanta moeda cara? Você ta loco?”. Luis corou. Tentou pensar num lugar bonito, mas sua floresta florida estava tornando-se um cerrado...

Pouco depois uma outra senhora apertou a campainha para descer muito perto do ponto e o motorista deu outra freada brusca. Acontece que a senhora não conseguiu se segurar nas barras, e para não cair segurou o Luís, tão forte que ele sentiu carne ser arrancada pelos seus arranhões. Todos em volta deram sorrisos de satisfação, parecia alguma forma de vingança pela velha do parágrafo anterior. Tentou pensar em um lugar bonito, mas a única coisa que vinha a sua cabeça era um descampado.

Desceu em seu ponto, suas costas doíam e incomodavam. Uma pessoa na rua lhe falou que sua camisa estava suja de sangue. Ele olhou no vidro de uma loja, de fato estava. O pior é que ele tinha uma reunião importantíssima no primeiro horário. Correu para tentar comprar uma camisa em uma loja, comprou e fez um curativo rápido, assim que saiu da loja e foi atravessar a rua um carro passou por uma poça e expirrou lama nele. Ele estava na quadra do trabalho, e cerca de trinta minutos atrasado para a reunião com os maiores acionistas da empresa. Decidiu entrar.

Estava tão sujo (naquele ponto o curativo das costas já havia rasgado) que o segurança não o reconheceu e tentou impedi-lo de entrar, ele não tinha tempo de explicar, e era o único com treinamento em English Bussines Aplication, portanto o único que poderia dirigir a reunião,entrou correndo. O segurança foi atrás, mesmo assim chegou no elevador antes dele.

Chegou em seu andar, e entrou correndo na seção, todos olhavam aquilo assustados, ninguém o reconheceu, nem mesmo as menininhas que tentavam seduzi-lo para subir na empresa. Entrou na sala de reuniões dizendo para si mesmo “pense num lugar bonito, pense num lugar bonito...”. Mesmo assim, só pensava no caos, na fumaça na lotação, na ausência da paz, barulhos corriam em sua cabeça, e flashes de luzes.

Seu chefe o reconheceu, mandou-o se acalmar, disse que não era necessário entrar na sala, pois o funcionário novo já estava fazendo a ponte e dirigindo a reunião, disse para ele não se preocupar e tentar ver o lado “positivo” de tudo aquilo.

Tentou pensar em um lugar bonito, só viu a imagem da explosão nuclear em sua cabeça, quando viu sua boca abriu automaticamente e gritou “positivo o c***!” derrubou seu chefe com uma bordoada (ele foi quem foi com ele para as reuniões da filosofia da vida positiva) e estava encima do funcionário novo (também adepto) enchendo-o de porrada. O segurança chegou e tentou para-lo, Luis jogou-o por cima dos ombros, e começou a gritar a bater contra o próprio peito, numa cena digna de King Kong.

A policia foi acionada, e como era uma empresa rica, chegou rápido. Levaram Luis que estava em estado catatônico num canto após ter posto em nocaute o diretor, o funcionário novo, a equipe de sete acionistas da empresa e mais alguns curiosos.

A polícia fez algumas perguntas ao pessoal, todos diziam que foram coisas horríveis que aconteceram, a volta à barbárie, uma encenação dos instintos mais primitivos, assustadores e prazerosos (uma mulher disse isso) do ser humano. O pobre Luis foi encaminhado a um Centro de Recuperação PsicoTerapeuticoAntropoSocial, e logo morreu de desgosto. Ele foi para um lugar bonito.

quinta-feira, 4 de março de 2010

Seria uma piada?

Precisei de uma identidade nova – a de papel e plastico, não a moral e metafísica. E o que já prometia ser minimamente demorado – a fila no Instituto de Identificação do Paraná ia bem longa – conseguiu demorar ainda mais, pois um funcionário veio dar a terrível noticía: o sistema caiu.

O “sistema”, ou então o grande Sistema. Seja com letra maíscula ou com as aspas neuróticas, ele tinha caído e ia atrasar a coisa toda. Sentado na cadeira de espera, suspirei e fiquei a olhar o povo a minha volta. Foi curioso que depois que o tal funcionário deu o aviso, todos os outros foram até ele. Reunião de última hora para solucionar o problema do Sistema? Que nada. Começaram a ter uma conversa muito da animada, tão animada que logo tudo era risos e dancinhas festivas. Deviam estar rolando uma piada muito boa.

- Aí ele perguntou pra mim, ”Ah, então vai ser rapidinho,né?”. Hahahaha, rapidinho! Hahaha.

Já que todos os atendentes, dos 8 guichês, riam horrores, deve ter sido mais ou menos isso.

Mas se eu estava lá, só estava por causa de outra piada: a primeira semana de aulas da UFPR. Essa piada, aliás, que a gente cansa de tomar conhecimento todo início de semestre, mas sempre acaba indo, acordando cedo, se apressando todo para não chegar atrasado e causar uma má impressão ao professor; em suma, faz tudo que um veterano sabe que não precisa fazer.

É sempre uma piada que ninguém entende direito. Eu pelo menos não entendo nada e tô sempre lá só pra perceber que nem aluno nem professor vão dar as caras. Assim como não entendi aquela rodinha dos funcionários do Instituto de Identificação tão animada. E por não entender a gente acaba ficando - como dizem no interior - de varde.

Sei lá, vai ver o Carlos e o Thiago, agora também funcionários públicos, metidos nas engrenagens institucionais, sovados pela máquina burocratica, rodados nas rotinas dum servidor, entendam essas piadas. Talvez também riam com elas enquanto os outros ficam lá, sentados, com compromissos desmarcados, com um tempo que não depende mais deles, ficando cada vez mais rabugentos, cada vez mais cegos diante de algumas limitações reais que não dependem de modo algum da boa vontade do funcionário público risonho em questão - justamente por que ele é todo risonho.

Diante disso tudo uns se emputessem com direito e legitimidade, e outros só por puro tédio – como eu timidamente assumo.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Os três porquinhos

Conhece os aclamados três porquinhos das Ciências Sociais?

Não. Não são Durkheim, Marx e Weber. Nesse caso, estaríamos mais para a abelhinha, a galinha e o cachorro. Abelhinha, porque vive numa colmeia muito doce e regular fazendo cera em solidariedade aos seus coleguinhas de trabalho para uma rainha que ninguém questiona. Galinha, porque, além de transar com a empregada, teve uma vida de combate às raposas – mesmo que suas próprias companheiras tenham demonstrado apreciar um ovo como ninguém. E, enfim, cachorro porque eu gosto de cachorro e gosto do Weber, que era muito camarada.

E a massa se questiona: se não eles, quem? E eu respondo: o mais famoso triunvirato da ciência social é composto, sem tirar nem por (afinal, em caso contrário seria uma senhora viadagem) pelos eminentes Carlos, César e Thiago.

Muito bem. Partindo dessa constatação, questionar-se-á mesoclisticamente: e o que estudam os pupilos em seu nicho de academia?

O Carlos não estuda. Quando muito, produz a mais chata das literaturas. Em razão disso, há de consagrar-se comandante-em-chefe do sexto andar.

O César estuda relações de gênero pelo viés da pedagogia sexológica a partir da etnografia do coito. É o próprio Piaget do século XXI. Tanto é assim que seus escritos são muito usados no sétimo andar desde que ele se tornou um feminista-alfa (ou machinista, que me lembra maquinista, que me remete a questões demasiado particulares). Também como Piaget, que era um moluscólogo, a motivação dos seus estudos é fundamentada na biologia. Para quem não sabe, o César é digno de protagonizar a novela Rei do Porco: ele cria suínos dos mais variados tamanhos, cores e formatos com o único intuito de fazê-los verdadeiros quenianos. Dada a semelhança entre homens e porcos, encontrou uma área de pesquisa. Além dessas semelhanças, César mantém outras conexões com Piaget – Piaget não parece nome de dono de ateliê? –, mas são pouco científicas e por essa razão não serão mencionadas nesse texto.

O Thiago estuda bastante, mas não fará uso de toda a carga de leitura que acumula na cachola. Por quê? Porque ele é um guitarrista de renome, e o bom senso reza que todo aquele que pode se afastar das ciências sociais o faça com a maior brevidade possível, em nome da saúde mental da espécie. Para Thiago, a ciência social brasileira carece de um guitarrista e ilustrador nas horas vagas – contribuição que, todos concordamos, revolucionará a práxis científica a partir dos estudos que dele decorrerem.

Embora três porquinhos não seja uma definição perfeita, não encontrei outra melhor. Apesar de o Carlos ter sofrido uma metamorfose e deixado o casulo formado pelo ranço acadêmico, a metáfora da borboleta é demasiado homorientada para ser estabelecida. Apesar de o César por os porquinhos pra correr, chamá-lo de lobo é uma inverdade porque os lobos vivem em matilha. E, apesar de o Thiago ser nutrido pela música e ter o ócio como desejo absoluto, ele não combina com a cigarra porque trabalha em serviço público e, se achar que o termo cigarra é ofensivo, ele pode me processar e me por na cadeia por trinta anos.

É. Os três porquinhos não são de todo mal.