sábado, 25 de abril de 2009

O que resta ao orante

Escrever é uma arte que nos exige a alma. É muito mais que mera transcrição: é um olhar depoente sobre a vida.

Que o Rubem Alves ignore a coincidência do exemplo, mas um bom chefe de cozinha é um sujeito chato por excelência – o chato é por minha conta. Acorda antes do sol e vai à feira. Permite-se absorver pelas cores. Pergunta. Apalpa. Cheira. Degusta. Calcula: a confiável couve do seu Armando, ligeiramente amarelada, ou a exuberante porém desgostosa couve da dona Amália?


A manhã vai alta quando enfim as especiarias mais apetitosas terminam de escolhê-lo. Munido, enfim, dos ingredientes mais frescos, fecha-se em seu templo para celebrar. O quê? Celebrar o sabor. Celebrar o sabor é a sagrada linguagem do mestre-cuca.

Que é carregada de ritos. O chefe devota atenção paternal aos itens de sua dispensa. Desembrulha o repolho com desvelo; amacia os extremos do pepino para não lhe ter amargo; abre a couve [do seu Armando] em mil tiras sem largura; faz do tomate oito gomos precisos; descobre cada curva da alface sob a água corrente; trata a berinjela; declara-se à cebola.


Feito isso, reúne sua prole dentro de relicários de metal em mística irreproduzível. O relógio confere: cozinha, cozinha, cozinha – e eis que se enche de aromas e sabores! As mágicas cotidianas invadem fronteiras para declarar que está na mesa aos homens de bom apetite.


No entanto, só e sem chapéu, recolhe-se. Restam os restos. Pratos, travessas, colheres e tampas: escombros da ilusão matinal. Solidão inexorável. Ingrata missão essa que avassala a alma e que se lava dia-após-dia.


Amanhã levantará antes do sol. Que ímpeto em recomeçar! Cozinhar também é uma arte que nos exige a alma. É muito mais que mera fervura: é um olhar temperado sobre a vida.

2 comentários:

Cesar disse...

Boa Carlinhos, exemplo melhor não há.
Um dia esse blog ainda perde para algum jornal o seu mais bem articulado escritor.

Anônimo disse...

de fato!

curti carlos, bem show