O Monge e o
Jornalista (Uma Fábula*)
Há muito tempo atrás no longínquo
planalto tibetano um monge decidiu entender a vida e sentou-se em silêncio para
isso. Reza a lenda que ele não comeu, bebeu ou falou nada por 38 anos e por
isso começou a ficar famoso. Alguns companheiros do monastério afirmaram tê-lo
visto flutuando enquanto meditava, o que provava que ele alcançou o perfeito
entendimento, o descolamento total entre vida material e
espiritual/sentimental/psicológico (dependendo da sua escolha epistemológica).
Essas proezas e boatos se espalharam por todo o sul e centro asiático, e sendo
Hong Kong a cidade globalizada que é, logo noticiários do mundo todo falavam
sobre o tal monge.
Obviamente o Ocidente não poderia
descansar enquanto não conseguisse uma entrevista que sintetizasse de forma
rasa a trajetória do monge e leva-lo para programas de auditório, afinal ele
era o novo grande fenômeno mundial, era um viral, explodira com vídeos onde ele
flutuava na internet. O problema é que a política da região do Tibete é
complicada, era impossível saber se as negociações deviam ser feitas com a
China ou com o Governo do Tibete no Exílio e fato é que ninguém conseguiu se
aproximar do monge. Até cerca de um mês atrás.
No dia em questão o mundo acordou
com uma notícia bombástica: O monge que voa descobriu o sentido da vida e quer
revela-lo para o mundo. A partir daí os diferentes veículos de comunicação
entraram em guerra para descobrir quem faria a entrevista que mudaria o mundo,
foi uma guerra de produtores, agências e governos, e de alguma forma o
escolhido para fazê-lo foi um canal de um País da América Latina que
aparentemente havia ajudado a consolidar a ditadura militar e tudo de ruim que
acontecera naquele país, mas isso era
coisa esquecida. O tal canal tinha um jornalista famoso por fazer entrevistas
com famosos, um tal de Zeca alguma coisa. E tudo foi agendado.
O monge quis uma equipe pequena
de produção, queria fazer tudo da forma mais intimista possível, e o fez. Falou
por pouco mais de duas horas, disse palavras sábias com uma contundência
ancestral. O canal fez uma super produção com a entrevista, editou-a e montou
um programa exibido mundialmente. O mundo parou ao ver o programa, e o monge
também. Só que o monge parou por perplexidade, tudo o que ele havia dito foi
distorcido. Não apenas distorcido, quando o monge disse X o jornalista sequer
afirmou que ele disse Y, mas -X! Não apenas mal interpretaram suas palavras,
como disseram o exato oposto do que ele descobriu em 38 anos de reflexão profunda.
Todos os jornais, noticiários,
revistas, e sites idiotas de pseudo-notícias reproduziram o que o jornalista
disse que o monge disse, tim-tim por tim-tim. Por mais que o monge tenha ido
mais tarde a outras mídias especializadas, e mais intelectualizadas e
desmentido a sua entrevista, o grande publico nunca chegou a saber o sentido da
vida, porque se uma mentira repetida mil vezes se torna verdade quanto mais uma
mentira, gravada, bem editada e reproduzida bilhões de vezes.
O monge ficou desolado, tentou
refletir novamente, mas a amargura era demais, então ele flutuou novamente, seus
pés saíram do chão, só que dessa vez com uma corda ao redor do pescoço. E o
mundo continuou a mesma merda.
*composições literárias onde um
ou mais personagens (ou o narrador) são animais.
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