domingo, 18 de abril de 2010

Ou isto ou aquilo

Vejam que coisa: por mais que o pensamento social tente aos poucos se desfazer do olhar dicotômico que marcou os séculos XIX e XX (creio que a dialética seja o maior exemplo disso), em mim esse viés persiste. Em mim e numa carrada de gente.

Entre o 0 e o 1 existem infinitos valores. No entanto, o fato é que, a nível de síntese teórica, tende-se mais ao 0 ou ao 1. Ou minhas estruturas psíquicas são anacrônicas, ou a realidade é de fato dialética. Ou ambos, sinteticamente.

Lembro que logo no primeiro semestre em que entrei em Ciências Sociais tivemos uma matéria chamada História das Revoluções. Ou algo assim. Lembro que o nome da professora era Judithe e que ela tinha idade para ser minha avó. Naquele semestre, lemos com ela apenas Revolução Francesa e Revolução Industrial. Por quê? Porque ela (embora cansada, ainda marxista) entendia que a primeira era responsável pela revolução ideológica que o mundo vive até os dias atuais, e a segunda pela revolução tecnológica que nos acompanha igualmente.

Apesar de ambas as revoluções serem fatos cujas gêneses remontem estruturalmente a fenômenos comuns, e embora as dicotomias sejam cada vez mais evitadas, como eu havia comentado, essa divisão epistemológica é analiticamente sensata. É preciso recortar o olhar, para otimizá-lo. É preciso até mesmo desenhar caricaturas, para melhor encontrar as características e causas determinantes do objeto de pesquisa. Como um primo meu me ensinou, “para arrumar um cubo mágico é necessário desarrumá-lo a partir de uma ordem prestabelecida e funcional”. Ou seja, a dicotomia é um logaritmo válido, na medida em que provisório, metodológico, distante da realidade factual. Ou resseja, ela não responde pelo mundo vivido.

Se pensarmos mais a fundo, todo o processo de aprendizagem e síntese que fazemos da realidade é organicamente metodológica. Afinal, a criança aprende sem saber que aprende, e aprende. Os animais aprendem sem saber que aprendem, e aprendem. Os povos ditos primitivos aprendem mesmo sem ter um sistema de formação de conhecimento formal, e aprendem. (Parêntese: se você não gosta da comparação entre criança, selvagem e animal, por mais razão que você tenha, isso não vem ao caso no momento. Logo, contenha-se). Sendo assim, nosso olhar perante a realidade – nossos julgamentos, nossos valores, nossos discursos, toda a mediação que fazemos entre o mundo pensado e o mundo vivido – passa por uma espécie de sistema orgânico de assimilação. Algo como um sistema operacional.

Enfim, pode ser que a tendência ao olhar dicotômico provenha justamente desse sistema natural e intrínseco, pelo qual não respondemos conscientemente. Por um lado, isso nos une à realidade, na medida em que nós próprios somos parte dela, dentre causas e efeitos, motivações e manifestações – deixamos de ser o protagonista e somos parte integrante do Todo. Por outro, nos afasta da realidade, na medida em que todo esse “sistema operacional” é virtualmente condicionado pelos determinantes culturais, definitivamente operantes.

E acabamos com uma dicotomia.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Luís e a Vida Positiva


Luis acordou cedo e bem disposto, na noite anterior havia decidido a não deixar mais nada lhe aborrecer, e que evitaria ficar bravo ou com raiva. Ele havia visto num programa de televisão as benesses que uma vida ‘positiva’ poderia lhe trazer, assim pesquisou na grande rede e freqüentou um ciclo de palestras duma instituição cujo emblema e o nome misturava filosofia, misticismo e biologia. Na noite anterior ele havia se formado num simpósio de dez semanas, com certificado e tudo, assinado por um parapsicólogo.

Preparou seu café, evitou colocar o açúcar, também havia aprendido como a alimentação saudável pode mudar o movimento do cosmos e fazer a manutenção da vida ‘positiva’. Comeu uma broa integral com queijo branco, qualquer pessoa em sã consciência acharia aquilo horrível, ele adorou. Fez a barba e se perfumou, sabia o quanto a boa apresentação é positiva para a percepção que as pessoas fazem de si. Tomou o ônibus um pouco mais cedo do que o de costume.

Logo que entrou no ônibus, teve sua primeira prova de paciência, o ônibus estava lotado. Respirou fundo, e fez como lhe ensinaram, pensou em um lugar bonito, voltou a concepção holística do universo entendeu todos os presentes ali como seus irmãos, procurou se colocar numa situação de empatia, e entender que todos ali tinham suas preocupações, e que se estavam ali provavelmente havia algo que os unia. Uma convergência de contextos, que gerou uma conjectura própria, com suas regras específicas e ele aceitava o papel de ser um cavaleiro numa cruzada para impor os princípios de respeito e amor naquele local. Assim, foi entrando no ônibus, pedindo licença e tentando ser o mais educado possível. Apesar de seus esforços só conseguia com que as pessoas bufassem quando ocorriam encontrões. Aos trancos e barrancos chegou até a cobradora. Como um bom representante da ‘filosofia da vida positiva’ havia deixado o dinheiro separado, em moedas, para facilitar o troco. Exatamente no momento em que pegou as moedas nas mãos o ônibus freou bruscamente, as moedas espalharam-se por todo o ônibus, pisoteadas por todos. Não havia a menor possibilidade de sequer pensar em junta-las. Uma raiva lhe subiu, mas ele conseguiu se controlar e evitou o xingão que estava prestes a bradar.

Respirou fundo, pensou em um lugar bonito, pegou a carteira. Deu bom dia a cobradora, ela olhou-o com desprezou e balbuciou qualquer coisa, o que só o fez aumentar a raiva. Só tinha uma nota de 50 reais na carteira, deu-a para a cobradora, ela retornou 20 reais de troco, ele ficou esperando o restante, ela apontou para a plaquinha na janela que dizia “Troco Máximo 20 reais”. Ou seja, pagou trinta reais numa viagem de 30 minutos. Pensou em reclamar, mas sabia que aquilo não cabia a quem queria levar uma vida positiva. Pagou, pensou em um lugar bonito, o número de arvores deste lugar diminuía em seus pensamentos, e os animais do lugar estavam ficando de mau humor também.

Entrou mais adentro no ônibus, as pessoas bufavam, mas não havia como passar sem empurrar, além do que todos o olhavam com desprezo por ter pago trinta reais na viagem. De repente ouve-se um barulho na parte da frente do ônibus, parecia que uma pessoa havia caído. Logo chegou a noticia, uma senhora velhinha tropeçou em uma série de moedas de cinco centavos, que um engomadinho havia derrubado! Todos a sua volta o olharam feio. Um deles perguntou “Pra que tanta moeda cara? Você ta loco?”. Luis corou. Tentou pensar num lugar bonito, mas sua floresta florida estava tornando-se um cerrado...

Pouco depois uma outra senhora apertou a campainha para descer muito perto do ponto e o motorista deu outra freada brusca. Acontece que a senhora não conseguiu se segurar nas barras, e para não cair segurou o Luís, tão forte que ele sentiu carne ser arrancada pelos seus arranhões. Todos em volta deram sorrisos de satisfação, parecia alguma forma de vingança pela velha do parágrafo anterior. Tentou pensar em um lugar bonito, mas a única coisa que vinha a sua cabeça era um descampado.

Desceu em seu ponto, suas costas doíam e incomodavam. Uma pessoa na rua lhe falou que sua camisa estava suja de sangue. Ele olhou no vidro de uma loja, de fato estava. O pior é que ele tinha uma reunião importantíssima no primeiro horário. Correu para tentar comprar uma camisa em uma loja, comprou e fez um curativo rápido, assim que saiu da loja e foi atravessar a rua um carro passou por uma poça e expirrou lama nele. Ele estava na quadra do trabalho, e cerca de trinta minutos atrasado para a reunião com os maiores acionistas da empresa. Decidiu entrar.

Estava tão sujo (naquele ponto o curativo das costas já havia rasgado) que o segurança não o reconheceu e tentou impedi-lo de entrar, ele não tinha tempo de explicar, e era o único com treinamento em English Bussines Aplication, portanto o único que poderia dirigir a reunião,entrou correndo. O segurança foi atrás, mesmo assim chegou no elevador antes dele.

Chegou em seu andar, e entrou correndo na seção, todos olhavam aquilo assustados, ninguém o reconheceu, nem mesmo as menininhas que tentavam seduzi-lo para subir na empresa. Entrou na sala de reuniões dizendo para si mesmo “pense num lugar bonito, pense num lugar bonito...”. Mesmo assim, só pensava no caos, na fumaça na lotação, na ausência da paz, barulhos corriam em sua cabeça, e flashes de luzes.

Seu chefe o reconheceu, mandou-o se acalmar, disse que não era necessário entrar na sala, pois o funcionário novo já estava fazendo a ponte e dirigindo a reunião, disse para ele não se preocupar e tentar ver o lado “positivo” de tudo aquilo.

Tentou pensar em um lugar bonito, só viu a imagem da explosão nuclear em sua cabeça, quando viu sua boca abriu automaticamente e gritou “positivo o c***!” derrubou seu chefe com uma bordoada (ele foi quem foi com ele para as reuniões da filosofia da vida positiva) e estava encima do funcionário novo (também adepto) enchendo-o de porrada. O segurança chegou e tentou para-lo, Luis jogou-o por cima dos ombros, e começou a gritar a bater contra o próprio peito, numa cena digna de King Kong.

A policia foi acionada, e como era uma empresa rica, chegou rápido. Levaram Luis que estava em estado catatônico num canto após ter posto em nocaute o diretor, o funcionário novo, a equipe de sete acionistas da empresa e mais alguns curiosos.

A polícia fez algumas perguntas ao pessoal, todos diziam que foram coisas horríveis que aconteceram, a volta à barbárie, uma encenação dos instintos mais primitivos, assustadores e prazerosos (uma mulher disse isso) do ser humano. O pobre Luis foi encaminhado a um Centro de Recuperação PsicoTerapeuticoAntropoSocial, e logo morreu de desgosto. Ele foi para um lugar bonito.