quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Assim é uma cidade do interior

Já antecipo o pedido de desculpas pelo texto; mesmo estando uma semana de molho na casa dos pais, coçando a barriga para não coçar outra coisa, escrever pode ser algo torturoso. E neste caso, resultado das pressões editoriais(leia-se, o Carlos estava me cobrando), não podia dar coisa muito boa. Mas vá lá, é quase verão, quase fim de ano, e o Brasil é quase um quase-bom país. Então dá para agüentar certas coisas. Imagino que cada um pode escrever melhor do que entende, vive e sente; sendo assim, lá vai - é tempo para um segundo pedido de desculpas, desta vez por tamanha subjetividade.

Enquanto escrevo isso, o sol ali fora doura a vizinhança: as casas vizinhas, os caras que pintam o muro, as árvores grandes, a rua estreita. O vento é fresco e traz o canto dos passarinhos – uns pardais amarronzados e uns mais coloridos que faço a mínima idéia do que sejam; volta e meia as crianças passam correndo de bicicleta rindo, e depois passa um sorveteiro e sua buzina clássica que o anuncia. Mais cedo passou o verdureiro com a carroça puxada por um cavalo, sovado e cansado, e mais tarde, caindo a noite, passará uma legião de velhos caminhando para a igreja que fica umas ruas adiante. E assim a cidade do interior cruza o dia.

Mais tarde também, antes de anoitecer, é hora de ir no parque; depois da seis, do fim do expediente as pessoas saem dos seus trabalhos e vão bater perna na pista que circunscreve o lago do parque municipal. As crianças vão de motoca – sim, isso ainda existe -, os adolescentes com perfume – sempre é hora de
paquerar por aqui – e os adultos com roupas de exercício mas que escondam as barrigas de cerveja e carne – que se repete todo final de semana, só muda a casa do ‘compadre’. E se não é o parque, são as ruas comuns mesmo; com o final da tarde os alunos das escolas passeiam para lá e para cá tomando sorvete e atualizando as fofocas.

Aí todo dia é dia de feira. As melhores são as de terça e sexta-feira. São aquelas que aparecem mais feirantes e mais pessoas; no início da feira, que começa pelas cinco da tarde, vão as pessoas que querem comprar legumes, frutas e verduras; também tem café moído na hora, pão caseiro de todo tipo e tanto tipo de farinha que é preciso de um intérprete para saber qual é qual. Aí, quando a noite vem caindo, a feira é tomada pelos mais novos; comem coxinhas, pastéis, tapiocas, espetinhos de carne e de queijo, bebem sucos naturais, garapa – com abacaxi, limão ou pura, vai do gosto -, matam o tempo até ficar tarde demais e as barracas começarem então a se fechar. E assim se diverte a cidade do interior.

Na ruas as pessoas encaram, olham, cumprimentam. Quem chega de fora é notado e estranha tamanha invasão ocular – deve ter nome melhor para as insistentes olhadas, mas fiquemos com invasão ocular que até sofistica esse texto simplório. Na feira, no parque e na igreja – o que resume bem a vida social curta, mas nem por isso simples, da cidade do interior -, todo mundo já nota quem é daqui e quem é de fora, pois quem é de fora ta sempre fingindo que não conhece ninguém e que não existe situação própria para soltar um ‘boa tarde!’ senão em uma situação formal. Velhos ou jovens, as pessoas realmente cumprimentam; basta fazer o mesmo trajeto, cruzar nem que seja a mesma esquina ou caminhar na mesma hora, e vai estar aí uma situação boa para um cumprimento cordial. E é assim que as pessoas funcionam no interior.

É um universo peculiar, único, que cada cidadezinha do interior do Paraná apresenta e é. Nada resume, nem quando falamos com respeito e menos ainda quando se fala com desprezo. Cidades do interior são o que são, e, ah, são muito! Aí chega um pseudo-curitibano e pseudo-cientista social tirando uns dias de folga, caindo sem pára-quedas numa cidade assim – ‘a modo’ de visitar seus pais, diriam os nativos daqui -, e fica todo bobo. Mas a bobice é perdoada; por mais que seja bom estar numa cidade grande que corra independente de você, indiferente a você, e livre de você, acordar e ver que o horizonte não é tomado por prédios é uma coisa que dá um conforto; sabe-se que andando uns poucos quilômetros tanto ao norte, ao sul, a leste ou a oeste, a cidade acaba, os rostos se repetem, e a vida parece um pouco, um pouquinho só mas já o suficiente, mais colorida do que nas grandes capitais.

O vento cessou um pouco, os caras que pintavam o portão deram um tempo; o sol ta muito forte. As crianças do vizinho agora se reúnem embaixo de uma árvore, e do outro lado da rua a babá cuida de uma menininha de no máximo 4 anos que brinca com uma boneca. O sorveteiro vem voltando, ao longe já da pra escutar novamente a buzina; os pardais fazem a festa no monte de areia que ta posto na construção inacabada ali na esquina, e também é possível escutar uns quero-queros que voam por perto. Mais ao longe, quase que raramente, escuto uma moto que cruza a cidade; estando só a 5 minutos do centro, parece até que aqui não há carro. Ah, assim é uma cidade do interior.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Outras breves questões acerca do mundo laboratório

Homenagens rendidas por temas baratos

Em nossa última publicação – Algumas Breves Considerações Acerca do Mundo Laborativo –, o Thiago arranhou o ponto fundamental da mais alta antropologia já produzida, que procuramos retomar neste precioso texto que vos prende a atenção: aquilo que diferencia os homens. Segue o excerto que conclui o artigo anterior:

“Creio que a maioria se misturaria com as pessoas, usaria seu incrivel
instrumental político para ascender na carreira, daria mostras de sua
inteligencia e potencial, mas eu, tímido, sem muita afeição pelos seres humanos,
que nunca gostei de política, e preferi estudar a sociologia interacionista,
fico lá tirando xerox, carimbando papel, e analisando as relações sociais,
tranformando quatro anos de faculdade de ciências sociais em um belo
passatempo...”
Primeiramente, cabe lembrar que a tradição antropológica bestruturalista já respondeu em parte à questão fundamental: apenas os grupos humanos são capazes de produzir cultura. Se essa cultura nasce dum biguebengue epistemológico ou se ela se deu gradativamente, dos primatas aos promíscuos, cabe aos neurocientistas do Fantástico responderem. O fato, porém, é que a partir dessa produção é que o ser humano se torna ser humano. É o que o diferencia como tal.

Em segundo lugar, é superficial considerar o homem cultural como um produto antropológico acabado. O circo é nômade por excelência. Faz-se necessário questionarmos que homem é esse; que cultura é essa; que conhecimentos e valores são esses. Se não podemos considerar mais ou menos complexos e evoluídos um grupo em detrimento de outro, a razão quantitativo-visual promove uma reflexão que reside entre a curiosidade mórbida e o interesse empático.

Que diferenças são essas? – insistimos. Proponho que respondamos pelo excerto retirado do texto do Thiago, a quem não chamo pelo sobrenome de Elias, para evitar ambigüidades. Seguindo no trem azul, depreende-se do trecho extraído que há sobretudo duas esferas que permeiam as posturas que se pode assumir em comunidade: uma político-cênica, evidenciada pelo ser de contatos ou relações que protagoniza sua sociabilidade ao nível da linguagem interpessoal; e uma psicológico-sinestésica, caracterizada pela interiorização do ser, pelos monólogos ou diálogos silenciosos, pelo nível da consciência.

Eis o que diferencia manifestações culturais em termos subjetivos. Trata-se de fenômenos psicológicos, social e culturalmente determinados, cuja motivação subsidia as reflexões acima propostas [que homem é esse; que cultura é essa].

Não é difícil identificar, aliás, em que lado desta dicotomia nos filiamos. Observemos o Thiago, novamente. A postura de espectador perante o mundo adulto-sério é complementada compreensivelmente por participação ativa nas esferas que exigem essa profundidade subjetiva: escrita, música, religião...

Para complementar, a dicotomia fecha-se com o César, colaborador-alfa deste blogue. O César é um racionalista por natureza. Se o Thiago gosta de café preto, o César logo acrescentaria que o Thiago pensa que gosta. Isso não faz do César má pessoa; apenas o torna pouco afeito a visitas em ateliês, por exemplo. Aliás, sua afeição tão superficial à arte pode comprometer seu apreço por este texto.

Enfim, este trabalho antropológico de fôlego, qualitativamente inédito, não tem por objetivo central narrar a forma cativante como determinado grupo social casa, come, defeca, transa, sobe em árvores ou descasca abacaxis – mesmo porque etnografia urbana é deveras perigoso nas capitais. Ainda assim, esperamos que a contribuição que vos prende os olhos seja inscrita nos anais da mais alta produção artística a ser vendida em bancas e revistarias, em conformidade com a vocação antropológica.