
A
cidade estava tomada por um clima circense, haja visto que um grande circo
internacional havia chegado à cidade para uma longa temporada. Como tudo que é
internacional havia muita propaganda, patrocinadores deram um jeito de espalhar
palhaços de perna-de-pau pela cidade para divulgar o circo, além disso
arlequins e arlequinas, malabaristas e estes 'artistas' que soltam fogo pelas
ventas faziam a alegria da criançada, que faziam a tristeza dos pais
obrigando-os a comprarem os ingressos com preços abusivos. A cidade parecia
estar repleta de bandidos da gangue do Coringa nos jogos de video-game do
Batman. Até então tudo bem, apesar de eu não gostar de palhaços estava até
admirando aquele clima pós-moderno-retrô-vintage daquele dia, mas tudo que eu
queria era chegar ao meu café favorito e tomar uma bela xícara de café forte.
Enquanto estava indo uma voz me chamou num canto:
-
Ei rapaz! Vem aqui. - Obviamente achei que seria assaltado, mas bom cristão que
sou fui para não demonstrar fazer pré-julgamento de pessoas. Quando me aproximei
me assustei pra valer, era um palhaço desses assustadores vestido de azul a la Bozo e com a maquiagem inteira
borrada, como uma mulher que chorou com um rímel ''a prova d'água''.
-
Olá! - Respondi tentando esconder minha aflição - tudo bem?
-
Não, não está tudo bem. É tudo culpa deste maldito circo internacional!
Eu
estava com medo, achei que ele talvez fosse usuário de crack, e se tem algo que
me assusta mais do que palhaços são usuários de crack. O que dizer de palhaços que usam crack? Por algum razão
continuei a conversa:
-
O que é culpa deles?
-
O fato de eu estar aqui, desempregado, na rua da amargura. - Olhei na placa o nome da rua, era
de fato a Rua da Amargura.
-
Eu posso te ajudar? - Perguntei achando que ele pediria meu dinheiro - O que
aconteceu?
-
Bem, - começou ele que por alguma razão
me achou um bom ouvinte e como não falo muito ele estava certo - você conhece o
Circo do Salsicha?
-
Claro que conheço - era o circo mais tradicional da cidade, que me deixou com
tantos traumas de infância.
-
Pois bem eu trabalhava lá, eu nasci lá! Meus pais eram trapezistas e uma vez
minha mãe caiu e meu pai caiu encima e eu fui concebido assim. - Tentei sem
sucesso esconder minha cara de espanto, ele continuou - Cresci naquele ambiente
e logo me tornei um palhaço, vivemos alguns momentos gloriosos, tirando risadas
de crianças utilizando apenas um monociclo e dois guarda-chuvas. De uns anos
pra cá o Dom Salsicha, dono do circo, morreu e fomos a derrocada total, as
pessoas pararam de vir, pararam de rir, ninguém mais se surpreende com nossos
números! Só querem saber das super-produções. Gastam dinheiro pra ver os
blockbuster's de Hollywood, os mega-shows internacionais, os circos de além-mar
que misturam dança, efeitos especiais, fantasias caríssimas, coreógrafos russos
e contorcionistas asiáticos, além de uma equipe de produção e engenheiros
multi-disciplinar e multi-etnica. Ninguém
mais quer ver nosso velho elefante, ou globo da morte.
-
Bom, - comecei eu após um tempo de silêncio, tentando medir minhas palavras
para achar algo decente para consola-lo - você ainda pode fazer muitas coisas...
-
Como o que? Eu poderia estar matando ou roubando, ou pior fazendo stand-up -
graças a Deus ele tinha a noção de como com esse boom do stand-up inúmeros comediantes
sem graça ficam fazendo piadas medíocres para um publico medíocre que ri de
qualquer referencia escatológica;) ainda bem que ele não era desses. - mas eu
ainda tenho minha dignidade!
Neste
exato momento um jovem hipster (ou pseudo-hipster se todos os hipster já não são, por definição,
pseudo algo) cruzou a rua com uma lambreta, ou scooter, dessas bem caras que
tentam parecer antigas e descoladas. Alias o jovem, obviamente estudante
bancado pelos pais (como este que vós fala), vestia-se de modo a parecer retrô, paletó e calças curtas, capacete
pela metade amarrado no queixo, mala estilo carteiro e gravata slim.
Rapidamente refleti em quão caras eram aquelas roupas e aquela tentativa de ser
vintage. E tive uma idéia que mudaria
a vida do palhaço e da cidade.
-
Siga-me! - Disse eu ao palhaço,que me olhou assustado mas seguiu. Levei-o ao
café e fiz todo um plano de publicidade e marketing para ele, que consistia
basicamente em vender o peixe de que o Circo do Salsicha era um circo retro.
O
plano era simples, continuar fazendo os mesmos números, mas vender nos sites e
nos jornais fotos com filtros vintages
aplicados no instagram, aplicar Patina nos bancos do circo (cada um com
uma cor diferente alias) e cobrar um ingresso excessivamente caro, porque nesses
nossos dias de pós-modernidade os ''indivíduos'' pagam qualquer preço para se
diferenciarem das massas!
Tempos
mais tarde estava eu no mesmo café, dessa vez num dia cinza, e li no jornal
local uma reportagem sobre o renascimento e o sucesso do Circo do Salsicha,
liderado pelo Palhaço. A noticia louvava o circo como o mais tradicional não
apenas da cidade mas da região, e não faltavam elogios a escolha estética vintage do local. Lembrei da conversa
com o palhaço como lembrasse de um sonho antigo,um sonho vintage e retrô.