Eu
vinha andando por uma importante rua da cidade que conhecia tão bem. Parecia
que eu conhecia todos os ladrinhos daquela calçada, estava usando meu casaco
favorito,um pouco velho é verdade, mas tinha o bolso no lado de modo que podia
colocar as mãos no bolso sem precisar fazer manobras (como fazem alguns desses
casacos modernos). Quem conhece aquela cidade bem sabe que ela pode ser bem
deprimente as vezes, mas aquele dia era diferente. Havia um clima de empolgação
no ar, apesar do vento a temperatura era amena e o céu estava marrom com tons
avermelhados ao contrário do cinza habitual. Era uma atmosfera bem apocalíptica
(diria até escatológica, caso não precisasse utilizar esta palavra mais tarde
com outra conotação), e isto servia para corroborar a impressão surreal que os
acontecimentos posteriores confeririam àquele dia, tudo me pareceu um sonho.
A
cidade estava tomada por um clima circense, haja visto que um grande circo
internacional havia chegado à cidade para uma longa temporada. Como tudo que é
internacional havia muita propaganda, patrocinadores deram um jeito de espalhar
palhaços de perna-de-pau pela cidade para divulgar o circo, além disso
arlequins e arlequinas, malabaristas e estes 'artistas' que soltam fogo pelas
ventas faziam a alegria da criançada, que faziam a tristeza dos pais
obrigando-os a comprarem os ingressos com preços abusivos. A cidade parecia
estar repleta de bandidos da gangue do Coringa nos jogos de video-game do
Batman. Até então tudo bem, apesar de eu não gostar de palhaços estava até
admirando aquele clima pós-moderno-retrô-vintage daquele dia, mas tudo que eu
queria era chegar ao meu café favorito e tomar uma bela xícara de café forte.
Enquanto estava indo uma voz me chamou num canto:
-
Ei rapaz! Vem aqui. - Obviamente achei que seria assaltado, mas bom cristão que
sou fui para não demonstrar fazer pré-julgamento de pessoas. Quando me aproximei
me assustei pra valer, era um palhaço desses assustadores vestido de azul a la Bozo e com a maquiagem inteira
borrada, como uma mulher que chorou com um rímel ''a prova d'água''.
-
Olá! - Respondi tentando esconder minha aflição - tudo bem?
-
Não, não está tudo bem. É tudo culpa deste maldito circo internacional!
Eu
estava com medo, achei que ele talvez fosse usuário de crack, e se tem algo que
me assusta mais do que palhaços são usuários de crack. O que dizer de palhaços que usam crack? Por algum razão
continuei a conversa:
-
O que é culpa deles?
-
O fato de eu estar aqui, desempregado, na rua da amargura. - Olhei na placa o nome da rua, era
de fato a Rua da Amargura.
-
Eu posso te ajudar? - Perguntei achando que ele pediria meu dinheiro - O que
aconteceu?
-
Bem, - começou ele que por alguma razão
me achou um bom ouvinte e como não falo muito ele estava certo - você conhece o
Circo do Salsicha?
-
Claro que conheço - era o circo mais tradicional da cidade, que me deixou com
tantos traumas de infância.
-
Pois bem eu trabalhava lá, eu nasci lá! Meus pais eram trapezistas e uma vez
minha mãe caiu e meu pai caiu encima e eu fui concebido assim. - Tentei sem
sucesso esconder minha cara de espanto, ele continuou - Cresci naquele ambiente
e logo me tornei um palhaço, vivemos alguns momentos gloriosos, tirando risadas
de crianças utilizando apenas um monociclo e dois guarda-chuvas. De uns anos
pra cá o Dom Salsicha, dono do circo, morreu e fomos a derrocada total, as
pessoas pararam de vir, pararam de rir, ninguém mais se surpreende com nossos
números! Só querem saber das super-produções. Gastam dinheiro pra ver os
blockbuster's de Hollywood, os mega-shows internacionais, os circos de além-mar
que misturam dança, efeitos especiais, fantasias caríssimas, coreógrafos russos
e contorcionistas asiáticos, além de uma equipe de produção e engenheiros
multi-disciplinar e multi-etnica. Ninguém
mais quer ver nosso velho elefante, ou globo da morte.
-
Bom, - comecei eu após um tempo de silêncio, tentando medir minhas palavras
para achar algo decente para consola-lo - você ainda pode fazer muitas coisas...
-
Como o que? Eu poderia estar matando ou roubando, ou pior fazendo stand-up -
graças a Deus ele tinha a noção de como com esse boom do stand-up inúmeros comediantes
sem graça ficam fazendo piadas medíocres para um publico medíocre que ri de
qualquer referencia escatológica;) ainda bem que ele não era desses. - mas eu
ainda tenho minha dignidade!
Neste
exato momento um jovem hipster (ou pseudo-hipster se todos os hipster já não são, por definição,
pseudo algo) cruzou a rua com uma lambreta, ou scooter, dessas bem caras que
tentam parecer antigas e descoladas. Alias o jovem, obviamente estudante
bancado pelos pais (como este que vós fala), vestia-se de modo a parecer retrô, paletó e calças curtas, capacete
pela metade amarrado no queixo, mala estilo carteiro e gravata slim.
Rapidamente refleti em quão caras eram aquelas roupas e aquela tentativa de ser
vintage. E tive uma idéia que mudaria
a vida do palhaço e da cidade.
-
Siga-me! - Disse eu ao palhaço,que me olhou assustado mas seguiu. Levei-o ao
café e fiz todo um plano de publicidade e marketing para ele, que consistia
basicamente em vender o peixe de que o Circo do Salsicha era um circo retro.
O
plano era simples, continuar fazendo os mesmos números, mas vender nos sites e
nos jornais fotos com filtros vintages
aplicados no instagram, aplicar Patina nos bancos do circo (cada um com
uma cor diferente alias) e cobrar um ingresso excessivamente caro, porque nesses
nossos dias de pós-modernidade os ''indivíduos'' pagam qualquer preço para se
diferenciarem das massas!
Tempos
mais tarde estava eu no mesmo café, dessa vez num dia cinza, e li no jornal
local uma reportagem sobre o renascimento e o sucesso do Circo do Salsicha,
liderado pelo Palhaço. A noticia louvava o circo como o mais tradicional não
apenas da cidade mas da região, e não faltavam elogios a escolha estética vintage do local. Lembrei da conversa
com o palhaço como lembrasse de um sonho antigo,um sonho vintage e retrô.