quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Lugar de gente feliz

Hoje fui a um minimercado comprar algumas coisinhas.

Parêntese: esse minimercado está longe de ser o armazém de bairro de outrora e muito longe de ser uma grande rede de supermercados, como o Pão de Açúcar. E há uma regra diferente que rege os mercados nesse mundo pós-moderno. Antes era: normalmente cresce, raramente quebra. Agora é: raramente é comprado por um maior, normalmente quebra.

Engraçado. O Pão de Açúcar só quebraria no século XVI, quando era feito pra isso: moída a cana, colocava-se o caldo dentro de uma forma de barro com esse nome. Que sorte: o pão de açúcar descansava por 45 dias, diferentemente dos escravos. Depoimento do padre jesuíta Fernão Cardim, naquele século:

Cada engenho é uma máquina e fábrica incrível. Em cada um, de ordinário há seis, oito ou mais brancos e, ao menos, 60 escravos, que se requerem para o serviço. Os trapiches,engenhos que moem a cana com bois, requerem 60 bois, os quais moem de doze em doze, revezados: começa-se de ordinário a tarefa à meia noite e acaba-se no dia seguinte às três ou quatro horas depois do meio dia. Em cada tarefa se deita 60 a 70 formas de açúcar branco e mascavo. Cada forma tem mais de meia arroba. Os serventes andam correndo, e por isso morrem muitos escravos.

Ao que interessa: comprei feijão, alface, beterraba, couve, refri, tomate, cheiro-verde e pão. O que interessa nesse momento é o pão. Aliás, o pão já interessava faz tempo.

Pedi:

- Moça, quer me ver seis pães?

Muito doce, respondeu:

- Querer ver, não quero.

Gentil, continuei:

- Então me sirva sem ver!

Não soou nada gentil. Ela dissimulou, mas não gostou. Nem eu gostaria, creio. Piada sem sal, né?

O conceito de servidão ainda parece ser um completo tabu para o senso comum. Em nossa sociedade, ele se encaixa entre dois discursos distantes (idealmente) e próximos (historicamente), paradoxalmente: o discurso religioso e o discurso escravocrata. O discurso religioso lamentavelmente não costuma sair das casas de Cristo. Logo, o que resta para a sociedade secular é o secular conceito de servir como algo pejorativo, humilhante.

A moça abaixou a cabeça. Não me olhou mais nos olhos. Tudo o que vi foi uma toca de proteção e um avental, feitos de um algodão maranhense grosseiro, atrás de um tabuleiro repleto de pães de açúcar.

Dúvida de mercado: não quebra porque é comprado ou é comprado porque não quebra?

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

A bolha e o visco

Quando fiquei sabendo daquele ataque a alguns jovens na Avenida Paulista, algo com prováveis motivações homofóbicas, fiquei pensando na coisa toda, principalmente nessa aversão dos héteros contra os homos.

E o mais próximo que cheguei de uma conclusão, com certa ironia, foi de que todo hétero conta, lá no fundo, receber uma cantada dos homos. Não apenas uma cantada; dão como evidente que se o outro é homo, ele certamente, necessariamente, e inevitavelmente, irá cair matando com indiretas, olhares e xavecos em cima de todo hétero.

E o perverso da história é que quem cai matando, agora literalmente, são alguns héteros, com lâmpadas e pontapés.

Mais: se o homo eventualmente deixar claro que não tem interesse nenhum, o hétero vai ficar algum tanto ressentido pela expectativa frustrada!

Generalizações são complicadas, como sempre, mas creio que isso tem certa validade genérica.

Parece ser algo ensinado – escola? família? -, não sei. Mas o teste para tirar a prova é simples. Pergunte a um homem hétero o que ele acha de ter amigos gays. 'Ah, nada contra, desde que não venha com viadagem pro meu lado!'. Bingo. É um pressuposto que, sendo você hétero, e sendo o outro homo, potencialmente, quase naturalmente, ele vai 'ir de viadagem' para seu lado.

Nós héteros, com maior ou menor vergonha, já demos essa resposta um dia.

Vaidade masculina ou uma paranoia institucionalizada?

Lendo sobre o tal ataque aos jovens na Avenida Paulista percebi que podemos até nos revoltar. Aliás, a indignação nessas horas deve vir. Porém, não dá para dizer coisas do tipo nossa, que estranho isso acontecer. Ou então defender a tese de que é inexplicável esse tipo de violência, quase caída dum céu nebuloso.

É algo excessivamente comum, previsível e explicável.

Não tanto pelos motivos – que por serem culturais não são menos fugidios -, mas sim pelos sintomas. Eles se manifestam no dia a dia, sutis ou não. Bomba relógio prestes a explodir. E parece que a lógica dessa violência tem a ver com uma ideia de pureza particularmente desenvolvida na cabeça de alguns homens.

Sim, pois o que alguns héteros cultivam, ainda, é um ideal de pureza. Ele é do tipo de uma bolha de ar num raio de alguns metros em torno desse homem, e a pureza neste espaço tem de ser mantida. Caso não seja, tem-se um problema.

Trata-se de uma pureza heterossexual. O límpido e translúcido é formado por tudo aquilo que representa, ou contém, a dobradinha homem + mulher. É o puro. Mas tudo que igualmente possa representar ou conter a dobradinha homem + homem é simplesmente sujo, repugnante. Talvez viscoso.

E digo viscoso não a toa. É um termo completo neste caso. Simboliza o que é incerto, fluido, pegajoso, aquilo que uma vez que se entre em contato com, não se sabe se esse contato será interrompido.

E se o treco grudar de vez?

Acho ser uma boa metáfora para explicar a desconfiança violenta de alguns héteros contra os homos. Que nada viscoso ultrapasse a barreira de segurança...

Meu professor faria graça e diria, sei não, tem cheiro de desejo mal resolvido.

Se tem, não sei. Só sei que poucas são as violências que se justificam. E a do tipo homofóbica certamente não é uma delas.

Se os rótulos em si já tem um quê de estúpidos, agredir por conta deles é o que?