sexta-feira, 26 de outubro de 2012


O Monge e o Jornalista (Uma Fábula*)

Há muito tempo atrás no longínquo planalto tibetano um monge decidiu entender a vida e sentou-se em silêncio para isso. Reza a lenda que ele não comeu, bebeu ou falou nada por 38 anos e por isso começou a ficar famoso. Alguns companheiros do monastério afirmaram tê-lo visto flutuando enquanto meditava, o que provava que ele alcançou o perfeito entendimento, o descolamento total entre vida material e espiritual/sentimental/psicológico (dependendo da sua escolha epistemológica). Essas proezas e boatos se espalharam por todo o sul e centro asiático, e sendo Hong Kong a cidade globalizada que é, logo noticiários do mundo todo falavam sobre o tal monge.

Obviamente o Ocidente não poderia descansar enquanto não conseguisse uma entrevista que sintetizasse de forma rasa a trajetória do monge e leva-lo para programas de auditório, afinal ele era o novo grande fenômeno mundial, era um viral, explodira com vídeos onde ele flutuava na internet. O problema é que a política da região do Tibete é complicada, era impossível saber se as negociações deviam ser feitas com a China ou com o Governo do Tibete no Exílio e fato é que ninguém conseguiu se aproximar do monge. Até cerca de um mês atrás.

No dia em questão o mundo acordou com uma notícia bombástica: O monge que voa descobriu o sentido da vida e quer revela-lo para o mundo. A partir daí os diferentes veículos de comunicação entraram em guerra para descobrir quem faria a entrevista que mudaria o mundo, foi uma guerra de produtores, agências e governos, e de alguma forma o escolhido para fazê-lo foi um canal de um País da América Latina que aparentemente havia ajudado a consolidar a ditadura militar e tudo de ruim que acontecera  naquele país, mas isso era coisa esquecida. O tal canal tinha um jornalista famoso por fazer entrevistas com famosos, um tal de Zeca alguma coisa. E tudo foi agendado.

O monge quis uma equipe pequena de produção, queria fazer tudo da forma mais intimista possível, e o fez. Falou por pouco mais de duas horas, disse palavras sábias com uma contundência ancestral. O canal fez uma super produção com a entrevista, editou-a e montou um programa exibido mundialmente. O mundo parou ao ver o programa, e o monge também. Só que o monge parou por perplexidade, tudo o que ele havia dito foi distorcido. Não apenas distorcido, quando o monge disse X o jornalista sequer afirmou que ele disse Y, mas -X! Não apenas mal interpretaram suas palavras, como disseram o exato oposto do que ele descobriu em 38 anos de reflexão profunda.

Todos os jornais, noticiários, revistas, e sites idiotas de pseudo-notícias reproduziram o que o jornalista disse que o monge disse, tim-tim por tim-tim. Por mais que o monge tenha ido mais tarde a outras mídias especializadas, e mais intelectualizadas e desmentido a sua entrevista, o grande publico nunca chegou a saber o sentido da vida, porque se uma mentira repetida mil vezes se torna verdade quanto mais uma mentira, gravada, bem editada e reproduzida bilhões de vezes.

O monge ficou desolado, tentou refletir novamente, mas a amargura era demais, então ele flutuou novamente, seus pés saíram do chão, só que dessa vez com uma corda ao redor do pescoço. E o mundo continuou a mesma merda.

*composições literárias onde um ou mais personagens (ou o narrador) são animais.