sábado, 28 de junho de 2008

Um amor inocente, por favor


Perdoem tamanha subjetividade.

Era sexta-feira, final de semana e final de semestre. Cabeça a mil, coração perdido numa noite típica de quem só faz estudar. 21 horas e vou até a padaria comer algo depois da aula. Por mais incomum que isso seja de acontecer no dito estabelecimento(que aliás, merece um parentese já que foi lá onde, de um certo modo, este blog começou), um atendente chegou até mim e perguntou o que é que eu queria. Me contive e pedi alguma coisa para comer, mas que vontade de dizer polidamente 'um amor inocente, por favor'. Quem sabe tenha um doce com esse nome, mas provavelmente ele ficaria me olhando com cara de passado.

O que eu queria, de verdade, era um amor inocente, como aqueles que deixam de fabricar a uma certa altura da vida da pessoa. Eu queria, mas é um pedido para a coletividade, já que todos precisam dele. Minha teoria é que os quarentões que saem a caça das menininhas são só o resultado do confuso desejo desse amor inocente. O primeiro amor é o que fica não só por ser o primeiro, mas por que geralmente nasce com cheiro de vergonha, pudor, preocupação. As mãos suam, as orelhas ficam vermelhas e logo a vermelhidão vai para a cara toda. Os mais clarinhos sempre se dão mal nesse história.

Digo até que primeiro amor não tem que dar certo, basta que seja inocente. Não importa a idade em que o primeiro amor chegue, pois a inocência não se perde com os anos, mas sim com os amores que vem e vão. Estou falando do amor que não cabe em rígidas demarcações e conceitos; falo do amor que a gente toma por paixão e surge num olhar perdido e súbito. É o amor mais gostoso, por que nele só cabe a vontade pura e sem maldade. Dane-se a coerência, dane-se o sentido.

Não acho que amor tem que ser explicado, e a tendência de algum leitor perguntar 'mas afinal, o que é amor inocente?' só revela a falta que ele faz. Ele existe em relações que se concretizam, mas a concretude não é requisito; o amor inocente existe no beijo, mas existe muito mais no ruborizar; ele pode existir em adultos, mas insistimos em infantiliza-lo. Ele paira no ar pedindo para ser relembrado, mas que estúpidos somos nós em descarta-lo tão logo quanto podemos.

Há quem consiga prolongar esse tipo de amor até uma certa fase da vida, mas a duras penas. Talvez nossos pais e avós tenham conseguido extender isso por mais tempo, mas nós, alvos da mídia promíscua que nos dá namoro, casamento e divórcio, tudo na TV e no mesmo programa, estamos cada vez mais sendo convencidos a largar de canto o amor inocente.

Acho que o amor burocratizou e disso perdeu-se a inocência. Ninguém acredita mais nele senão houver coisas palpáveis ou factíveis. É todo um processo, longo e desgastante, até que o amor possa ser citado. Quero de volta o amor que surge do inexplicável, que não requer histórico nem prognósticos. Por isso defendo amor a primeira vista e até o amor virtual; creio serem os últimos redutos do amor inocente.

Dá dó desses garotos de hoje em dia. Na verdade sempre foram assim, mas acho que tá ficando pior. São todos vítimas da queda do amor inocente. Talvez sejam também as garotas, afinal, se até minha mãe fala do bumbum dos atores, o que dirão as garotas de hoje em dia. Dá medo. Mas são todos uns coitados, dignos de pena. Nunca sentirão o prazer de sentir a euforia que só o amor inocente proporciona quando se pega na mão da pessoa querida; hoje querem pegar logo tudo de uma vez, só para se gabar.

Ah, não queria ser saudoso ou nostálgico de tempos passados; nem parecer com esses hippies bobões que substancializam demais o amor. Mas que falta do amor inocente. A racionalidade nos toma, queremos experimentar tudo, nos deixamos influenciar por todos. Quando vê se foram as séries da escola e agora... tudo é instrumentalizado demais, chato demais. Ama-se não mais para você, e sim para os outros. O amor inocente talvez deva ser perdido para que possamos crescer e encarar melhor o mundo sem amor aí fora, mas que pena que dá ao vê-lo perdido em tão jovens casais.

quinta-feira, 19 de junho de 2008

E o Verbo se fez Carne

E a carne devolveu a regência ao Verbo




Convencionou qualquer coisa de inteligível, aprendeu a grafar, passou a viver em comunidades fixas, aprendeu a domesticar animais e a plantar seu pão e a dividi-lo e a explicar a natureza através de mitos. Terceirizou-se.
Ridicularizou o mítico, questionou a si mesmo, perguntou do mundo, pôs em cheque o visível, adivinhou o invisível, duvidou da existência, deu o Causal ao Altíssimo. Terceirizou-se.
Cantou aos céus, deitou-se às bússolas e astrolábios, imprimiu o sagrado com sangue, romanceou o opaco, rogou insurreições, ignorou verdades, incendiou as virtudes, dizimou espécies, reinventou a roda em anti-horário, quadriculou o Supremo, abraçou morais estranhas, crucificou oferendas. Terceirizou-se.
Gozou com o rígido, confeccionou nova ordem, entregou-se ao progresso, escreveu e leu e rezou e marchou em línguas tantas, manufaturou quitutes, desconheceu a ponta do nó, suou a vida e a morte, expurgou natos nus, ajoelhou em terras improdutivas, ordenhou enteléquias frias, robotizou a argila, postulou seus complexos, lutou pelo terço do dia, fugiu de casa a foguete, militou pela inveja, elegeu conjunturas, compreendeu-se só, arquivou o homem auto-suficiente. Terceirizou-se.
Esqueceu a função, competiu com a sombra, não viu Marte ao olho-nu, engarrafou o escapismo, quixoteou a ética, culpou o gem, enovelou o linear, casou com a virgem dos olhos de vidro, trapaceou o espelho, comprovou renda para adquirir liberdade sem limite disponível, indicou um psicotrópico, julgou-se máquina-bicho, injetou no ramo sintético. Terceirizou-se.

sexta-feira, 13 de junho de 2008

O Espírito Esportivo

Os presentes na sala não poderiam estar mais assustados. O único que mantinha a calma (ou a pose) era o padre, que estava há quase três horas tentando realizar o exorcismo. A possessa gritava com uma voz quase duas oitavas mais grave que a de um homem comum, e os tios e o pai que a seguravam quase não agüentavam. Na sala estava ainda a mãe da moça que disparava ave-marias e pai-nossos quase que mecanicamente.

De repente o padre parou com as falas rituais e olhou para a mãe com um olhar de quem descobre a solução para um problema que o incomoda há tempos:

- Para expulsar o demônio preciso saber quem ele é, conte-me como começaram as possessões!

- Ela começou a passar mal sempre que assistíamos jogos de futebol no final do ano passado – a resposta estava na ponta da língua da mãe, que acompanhava a filha dia após dia.

- Campeonato Brasileiro?

- É.

- Vocês têm tv a cabo?

- Não - respondeu a mãe sem entender a relevância daquilo, mas continuou – aqui só pega a globo!

- Aham. Então eram jogos do Corinthians.

Nesse momento a menina/demônio ficou quieta e procurava com os olhos alguma coisa. O padre chamou:

- Demônio Corinthians?

O demônio virou a cabeça para o padre (numa volta de 360 graus só pra assustar o povo e mostrar que aquilo não era exclusividade de Hollywood), olhou com um sorriso inocente de bêbado que acha o caminho de casa e falou num tom calmo e sereno, reiterado pela voz grave:

- Pois não?

- O que vossa demonecência quer no corpo desta menininha?

- Pera lá – falou como se defendendo de uma acusação implícita- não é nada do que vocês estão pensando, eu só quero saber como vai o timão.

Todos os presentes na sala fizeram um “vixi” sabendo que a situação pioraria quando ele soubesse da campanha do Corinthians. O padre só pode ser sincero:

- O Corinthians está na segundona...

Aqui a fala foi interrompida por um terrível grito de dor do orgulho do capetinha, um grito tão forte que quebraria os vidros da casa, caso a mãe já não tivesse os quebrado no mês anterior num distúrbio hormonal comum na menopausa. O padre continuou aos berros:

- E perdeu a copa do Brasil pro Sport!

- Ah, não acredito!

- É meu caro –respondeu o padre- existem muito mais coisas entre o céu e a Terra do que supõe sua vã filosofia.

- Só – concordou a besta com um linguajar descolado.

- Mas que mal lhe pergunte, por quê você escolheu essa garotinha para possuir e conseguir informações do Corinthians?

- Na verdade eu não escolhi – começou o diabinho tomando a xícara de café que estava no bidê nas mãos e reclinando-se preparando para narrar uma longa história- Como sabia que a Globo só transmitia jogos do timão fui para a central deles, mas fui capturado pelas ondas televisivas e quando vi estava aqui no meio do nada. De repente ouvi o Galvão gritando e fui correndo ver quanto estava o jogo, mas tropecei naquela tábua solta ali ó – apontou para a tábua em questão – e cai no corpo dela. E vou te dizer hein, é uma zona ali dentro, não dá pra entender nada, só pensando em meninos, roupas, opinião das amigas, auto-estima baixa...

- Sei, entendo as mulheres –afirmou o padre, o que fez com que todos lhe olhassem de forma estranha e mais tarde perdesse a batina.

- Enfim não conseguia ver o jogo, aí comecei a gritar feio doido. Será que o senhor pode me tirar daqui?

- Posso sim, mas devido a todo trabalho que você me deu vai com um castigo junto.

- Pega leve aí tio.

- Vá de retro satanás!

-----------------------------------------------------------

Agradeço a sugestão de título à companheira Aline.

quarta-feira, 11 de junho de 2008

O lápis quer ser caneta.


O lápis queria, do fundo de seu grafite, ser uma caneta. Cansara-se de tanto escrever, rabiscar, riscar, para que depois viesse a implacável borracha e lhe apagasse. Queria que todas suas anotações fossem tidas como sérias e que uma vez escritas, nunca seriam reformuladas. Nem borradas!

Toda vez que se colocava de lado para que a caneta, toda prepotente, fizesse uma rubrica ou passasse a limpo tudo o que ele, o lápis, tinha feito, sentia-se nada mais do que isso: uma coisa que ao tornar-se inapagável teria de abandonar sua escrita original. Não tinha outro jeito, o lápis tinha que se tornar caneta.

Estava saturado de gastar seu grafite em poemas apaixonados e fórmulas exatas. Todas as palavras que tinha delineado para dar forma literária ao amor só tinham validade quando caneta passava-lhe sobre. Tudo o que conseguia calcular precisamente, de nada valia se não fosse em azul ou preto; o cinza, perecível a borracha, de nada valia. Quando retirava-se para dormir em seu modesto penal de colegial, perguntava-se por que de tamanha má sorte, por que de ter sido fabricado como um lápis e não como uma caneta.

Não gostava de escrever isso, mas sentia inveja da caneta; ela estava sempre pronta para o que desse e viesse, vivia mais, servia mais, vendia mais, era forte em várias superfícies e mais forte que o lápis justamente nas superfícies na qual eram sua especialidade. Um caderno em branco sempre daria mais notoriedade para uma caneta; até o sistema favorecia a caneta.

E não era só isso. Olhar-se num espelho perdido na mochila era sentir ainda mais inútil por ser um lápis; não vivia sem um apontador por perto, e quando estava sendo utilizado por uma das mãos, a outra sempre segurava uma borracha. Uma condição de existência estressante, além do que, a caneta vive muito bem sem qualquer apontador, ela é independente e inapagável.

A pior crise que o lápis teve, e que foi também a primeira vez que quis ser uma caneta, foi quando sobre uma folha em branco, a serviço de um apaixonado errante, escreveu numa linha coisas sobre o amor, a paixão, o futuro brilhante e a felicidade prometida, mas um ou dois dias depois, escreveram por cima dele com caneta, sem dó nem piedade, coisas sobre ódio, desilusão, passado frustrante e uma infelicidade constante. Só depois lhe apagaram e lá ficou, forte como sempre, as letras da caneta.

Por fim, o lápis cansara-se de seu ser-objeto. No fim daquele bimestre, quando chegara o seu fim e não lhe restavam mais do que alguns poucos centímetros de vida, olhou para todas as páginas que escrevera e que foram viradas displicentemente. O que seriam de todos seus verbos passados? Estava esgotado e sem ânimo para mais nada, estava para perder a ponta.

Como ultimo ato, quis fazer as pazes com a borracha. Falou-lhe de seus dramas existenciais, e a borracha, flexível como sempre, pediu desculpas sinceras e, tentando confortar o lápis, disse-lhe que deveria estar feliz por que de tudo o que fazia, pelo menos algo era visível -ou poderia ser-, ao contrario da borracha que só fazia apagar e nunca teria notoriedade nenhuma, nunca deixaria algo 'escrito' no caderno.

Ficou pensativo. Resolveu falar com o seu próprio coveiro, o apontador. Explicou-lhe dos seus problemas e queixou-se da condição de lápis. O apontador, frio em seu misto de plastico e lâmina, só disse que o lápis era um bobo, pois todos sabiam que se queixava de boca cheia; quem era aquele que dava os primeiros passos para a construção final, mesmo que ela fosse feita pela caneta? O lápis! O apontador finalizou dizendo que ele sim tinha motivos mais verdadeiros para se queixar, pois tudo o que fazia era uma pequena participação, e rara, em qualquer texto que fosse.

O lápis ficou confuso com o que ouvira, mas ainda estava certo de sua condição. Se a borracha era triste por não deixar nada escrito, o lápis achou-se mais triste por que tudo o que deixaria escrito um dia se apagaria ou seria ofuscado por uma caneta. Se o apontador achava-se triste por deixar uma pequena atuação na obra geral, o lápis sabia que sua participação seria sempre o meio termo, o chove não molha, o escreve e apaga.

Não adiantava, o lápis cansara-se de seu grafite e de sua sempre cinzenta presença. Antes de seguir para seus centímetros finais, imaginou por aulas inteiras realizando uma escrita colorida, inapagável, última, essencialmente com o pé na eternidade e fugindo da triste história de tudo que é efêmero perante uma borracha.

domingo, 8 de junho de 2008

Eu mato, eu mato quem roubou minha cueca pra fazer pano de prato

Vozes alteradas. Polêmica em frente à televisão:
- Se eu achasse uma mala com dinheiro, eu só devolveria se soubesse quem foi que perdeu. Ou se tivesse medo que o dinheiro fosse sujo, de máfia, essas coisas. Se não, não. Vou dar pra polícia? Nunca!
- Ah, eu só devolveria se tivesse algum grau de afinidade com a pessoa.
- Ah, não. Se eu soubesse quem é o dono, mesmo que não tivesse afinidade, devolveria.
- Eu não. Quem me garante que se eu perdesse meu dinheiro alguém me devolveria?


Leitores amigos [arrisco serem amigos porque apenas esses aturariam esses o blogue], paira acima o espectro do pensamento mais obtuso que ronda o novo e o velho mundo: o pensamento egoísta.
A primeira criatura, receando que a polícia fizesse apropriação indevida do dinheiro alheio, resolve fazê-lo ela mesma. A segunda criatura não faz aos demais aquilo que espera para si mesma.
O diálogo dinheirista explicita as diferentes éticas professadas por diferentes pessoas. Na certa o mesmo ocorre com os leitores amigos e suas motivações. Por isso, vou chamá-los a duas reflexões: a subjetiva e a objetiva – embora eu creia que são faces complementares.
A ordem subjetiva de que falo é aquela análise psicológica movida pela abstração empática e fraterna comumente condicionada por valores religiosos que recaem na ética do trabalho. Ora, os recursos materiais são conseqüência de merecimento e são dados ao homem para fazer uso responsável e conseqüente, para si e para outrem. Não é sensato crer que malas de dinheiro caem do céu. Se se acha uma mala, antes de pensarmos na necessidade a ser suprida ou nas condições em que ela caiu em nosso colo [que na certa nos parecerão mágicas o suficiente para legitimar nossa sanha mercantil], precisa-se pensar que ela não é nossa. Simples: não é meu, não pego. Se pegar, devolvo. Se não tiver pra quem devolver, vai pra Polícia. Porque a verdadeira paixão cristã, tomando-a por exemplo, é renunciante. Assim imagino o Thiago.
E se alguém quiser doar o dinheiro pra instituições de caridade, oferecê-lo a pessoas amigas, deixar um agrado para a mulher do pão, fazer filantropia de toda sorte, contemplar o porteiro, presentear qualquer pessoa sorridente da rua, complicar a declaração de imposto de renda de algumas dúzias de pessoas, conhecidas ou não? Não, não sou tão ranzinza: é claro que não esqueço dos libertos! E é para eles que abro esse parágrafo especial. Aquele que consegue registrar coelhos fofinhos no céu e espeta morangos nos dedos para comê-los em fila podem dar o fabuloso destino descrito acima ao dinheiro sem preocupações com a legitimidade. Seria altruísta o suficiente para receber aval do Todo Poderoso e estaria de acordo com a perspectiva objetiva.
Por sua vez, essa perspectiva objetiva vem a ser uma análise social conduzida pela razão do sujeito histórico – a imanência pode ser suficientemente moral. Aqui imagino o César. Basta recriarmos uma tipologização dicotomizada entre a extrema solidariedade e entre o extremo egoísmo [algo como Durkheim ou os conceitos de apolíneo e dionisíaco]: a sociedade apolínea ou a mais solidária e coesa na certa são mais sustentáveis. Basta essa premissa para que tenhamos uma moral mais reta, mesmo que a consciência não remeta a nada mais transcendente.
No entanto, não é necessária qualquer forma de pensamento mais elaborado. A ética cristã está difusa no senso comum e determina com segurança a não apropriação da propriedade alheia. Não faça ao próximo aquilo que não quer que lhe seja feito, recomenda.
Assim, com largo espaço para as diferentes motivações que orientam os leitores amigos, é possível concluir que deixar malas com dinheiro perto do César ou do Thiago provavelmente seja mais seguro que guardar o dinheiro na cueca.